ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 17 Maio à Agosto de 2012
 
   
 
   
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Da classificação ao diagnóstico: um exemplo clínico

From classification to diagnosis: a clinical exemple

 
     
 

Maria Elisa F. G. Campos
Psicanalista, Psicóloga Judicial do Programa PAI-PJ-TJMG Mestre em Psicologia pela UFMG (Estudos Psicanalíticos) Doutoranda em Psicologia pela UFMG (Estudos Psicanalíticos)
E-mail: elisafgcampos@yahoo.com.br


Resumo: O presente artigo apresenta um caso de psicose classificado como psicopatia e discute as repercussões de tal classificação para a condução do caso. Além de psicopata, o paciente foi ainda nomeado de monstro e intratável. Busca-se, a partir das referências dos autores citados, desconstruir a classificação inicial e fazer uma discussão sobre a atual forma de classificação em saúde mental, com base nos manuais diagnósticos contemporâneos.
Palavras-chave: psicopatia, intratável, classificação, diagnóstico, psicanálise.


Abstract: The article presents a case of psychosis classified as psychopathy and discusses the implications of this classification for the leading of the case. Besides psychopath, the patient was still named as a monster and considered not able of being treated. Based on the references of the mentioned authors, we try to undo the initial classification and create a discussion about the current form of classification in mental health, from contemporary diagnostic manuals.
Keywords: psychopathy, intractable, classification, diagnosis, psychoanalysis.

 
 

 

INTRODUÇÃO

Ernane chega ao Programa PAI-PJ1 por uma determinação do juiz de direito de uma comarca do interior do Estado. O julgador necessitava dar encaminhamento ao caso, uma vez que o adolescente havia assassinado a mãe, a golpes de facão, e estava no momento de ser liberado de um centro de internação para adolescentes infratores em sua cidade. O prazo máximo determinado por lei para casos de medida socioeducativa de internação2 (três anos) já havia sido cumprido. Em parecer técnico emitido pela equipe de saúde do município, alertava-se para a situação de risco iminente de nova atuação criminosa. Sugeriu-se ao juiz, diante da falta de recursos da atenção em saúde mental em seu município, uma internação, desta vez clínica, em outro município com maiores recursos nessa área. Importante se faz considerar que casos como esses costumam embaraçar a justiça, como será discutido adiante, devido à gravidade do crime e à ausência de motivos. Seria Ernane considerado inimputável3? Legalmente, toda criança e adolescente são inimputáveis, do ponto de vista da responsabilidade legal, ressaltando- se que a criança é totalmente inimputável, mas o adolescente pode ser responsabilizado e responder pelo seu ato, por meio das medidas socioeducativas. O caso, até então inédito na atuação do Programa no interior, é acolhido devido à necessidade de se dar um tratamento outro que não aquele da segregação. A principal função do Programa, além de ser a de dar acolhimento ao sujeito portador de sofrimento mental que comete um crime ou ato infracional, é a de fazer uma mediação entre a justiça e a rede de atenção em saúde mental. No caso em questão, observou-se a necessidade de se acolher o sujeito, que até então não havia sido incluído nas discussões diagnósticas da rede e continuava sem tratamento. Lembramos aqui a importante referência de Jacques-Lacan (1966), “Do sujeito enfim em questão”, quando, ao iniciar seu ensino, ressalta a necessidade de se trazer de volta à cena do tratamento analítico o sujeito que, na maioria das vezes, ao ser classificado por uma nomeação diagnóstica, sequer é ouvido ou levado em conta.

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1 O Programa PAI-PJ pertence ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais e acompanha pacientes psicóticos que cometeram infrações penais, bem como adolescentes que cometeram atos infracionais e respondem a processos criminais. Foi criado no ano de 2000 como projeto-piloto e em dezembro de 2001 foi transformado em programa através da Portaria-Conjunta da Presidência do TJMG e da Corregedoria Geral de Justiça de nº 25/2001. Em 2010, o Programa foi expandido, a partir da Resolução 633 da Presidência do TJMG, com o objetivo de estender o acompanhamento a pacientes judiciários do interior do Estado de Minas Gerais.

2 Conforme a Lei 8069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Acessível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acessado em 28/11/2013.
A medida socioeducativa é aplicada ao adolescente que comete um ato infracional e visa a responsabilizá- lo pelo ato. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; ou internação em estabelecimento educacional, de acordo com o delito praticado, que se configura como regime de privação de liberdade.

3 O termo inimputável vem do vocabulário jurídico e diz respeito àquele que não pode ser punido por uma ação penal, conforme o artigo 26 do Código Penal brasileiro: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento". (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

Os fatos, do ponto de vista jurídico4

Segundo os autos processuais, Ernane, no início do ano de 2009, “ceifou a vida de sua genitora, sem nenhum motivo aparente”, com golpes de facão. Na ocasião do cometimento do crime ele tinha 14 anos de idade. Consta dos autos que o menor teria declarado que há muito tinha vontade de matar toda sua família (mãe, pai, irmãos). Há testemunhos de que, na manhã do crime, Ernane havia discutido com o irmão por motivo fútil e que a genitora os teria repreendido. Ernane, ainda de acordo com os fatos narrados no processo, colocou-se mais tarde como arrependido diante da mãe, tendo se mostrado bastante carinhoso com ela, “de forma dissimulada”. O adolescente teria “simulado estar arrependido” e não guardar nenhum rancor em relação ao irmão. Em seguida, a mãe comunicou aos filhos que iria buscar ovos no galinheiro no fundo do lote, como fazia rotineiramente antes de preparar o jantar. Minutos depois de sua saída, Ernane se apoderou do facão do pai5 (que era trabalhador rural) e se dirigiu ao galinheiro, onde se pôs a observar a colheita da mãe. Quando ela conseguiu cumprir sua tarefa, ao ver o filho ali por perto, convidou-o para voltarem para casa, fato habitual no dia a dia deles. “De forma repentina, sem nenhum motivo aparente e sem possibilitar qualquer meio de defesa à vitima, atingiu-a gravemente na cabeça e no corpo, com vários golpes de facão”, tendo as lesões causado, imediatamente, seu óbito.

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4 Conforme constam nos autos processuais relativos ao crime cometido por Ernane. As citações entre aspas dizem respeito ao texto como aparece no processo

5 Importante se faz ressaltar que andar munido de facão faz parte dos hábitos de algumas regiões interioranas, sendo o facão utilizado para abrir caminho na vegetação fechada. A esse respeito, o paciente relata que morava numa região com muitas cobras e o facão seria para matar alguma que aparecesse em seu caminho.

De acordo com o Ministério Público, tipificou-se aí o crime de homicídio, conforme o artigo 121, parágrafo 2o e inciso IV do Código Penal brasileiro (dissimulação e recurso que impossibilitou a defesa da vítima). Sugeriu-se a oitiva de testemunhas e do réu, além da aplicação da medida socioeducativa que coubesse ao caso, uma vez que Ernane havia cometido um ato infracional6. Como se trata de crime grave, que caberia para adultos uma condenação de reclusão de seis a vinte anos, aplica- se, a partir da Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a medida de internação em estabelecimento educacional. O Estatuto, conhecido popularmente como ECA, tem um caráter pedagógico e se fundamenta na socioeducação da criança e do adolescente que pratica um ato infracional. Por se considerar tratar-se de pessoa ainda em processo de desenvolvimento, busca-se, com a aplicação das medidas socioeducativas, que vão desde a advertência até a internação, reintegrar, o mais rápido possível, aquele sujeito ao convívio social, quando se trata das medidas de semiliberdade e de internação.

Ocorre que, quando Ernane foi internado, agora pela segunda vez e por justificativas clínicas, o serviço hospitalar especializado em adolescentes o classificou como psicopata e intratável. As discussões que se estabeleceram com a rede de assistência social e a de atenção em saúde mental fizeram aparecer a divisão das equipes, muitas vezes sendo trazido no discurso destas a nomeação de Ernane como monstro. Monstro passou a ser também um nome do sujeito em sua cidade natal. A situação encontrada quando da entrada do Programa PAI-PJ nessa rede de atenção era bastante tensa e não havia ocorrido até então o acolhimento do sujeito. As discussões sobre o diagnóstico, até então, ocorreram sem que se lhe oferecesse a palavra como recurso de tratamento. Ernane encontrava-se, mesmo após terem se passado três anos, perplexo diante do crime cometido, com manifestações depressivas e já havia feito uma tentativa de autoextermínio.

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6 Considera-se ato infracional, de acordo com o artigo 103 do ECA, a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Utiliza-se para a tipificação dos crimes o Código Penal brasileiro

A passagem ao ato de Ernane

Com a entrada no Programa PAI-PJ, Ernane passou a ser acompanhado sistematicamente, ocasião em que as sutilezas do caso foram sendo recolhidas para que se estabelecesse aí um diagnóstico para além da classificação de psicopata, intratável e monstro. Pode-se ouvir um pouco de sua história de vida. Esse sujeito classificado como monstro se revelou frágil e inseguro quanto a seu futuro. Sobre o crime, não sabia dizer dos motivos, mostrava-se arrependido e encontrava-se muito mal, do ponto de vista psíquico. Estava deprimido e bastante isolado do convívio com outras pessoas no hospital. Não se lembrava dos detalhes do crime, o que nos leva à hipótese de uma passagem ao ato. Nessa situação, ocorre um aumento exacerbado do nível de angústia, o embaraço atinge um ápice que leva o sujeito a um sofrimento insuportável. O ato, nesse caso, criminoso, pode se colocar como a única saída para o sujeito. Aliás, nesse momento, o sujeito sai de cena, como se verifica no caso pelo dado da amnésia, e cai como puro objeto nessa operação. Ernane não sabe contar sobre o crime, não sabe dizer dos motivos.

De acordo com Tendlaz, a passagem ao ato7 não é um conceito psicanalítico e não surgiu na prática e no ensino de Lacan. Trata-se, de fato, de uma noção procedente da clínica psiquiátrica clássica, introduzida no século XIX pela criminologia (TENDLARZ, 2008, p. 20). Quando passa a ser utilizado, esse termo denota impulsividade de condutas auto e heteroagressivas, criminais, violentas ou delinquentes. Portanto, ele é aplicado com uma conotação patológica, referindo-se a algo comum aos casos de loucura, demência ou perversão (Idem). Entretanto, conforme demarca a autora, é graças a Lacan e à teoria do significante que a passagem ao ato, concebida pela psiquiatria, pode se converter em uma noção de fundamental importância clínica, possibilitando uma definição muito distante de sua concepção originária. Lacan demonstra que, tanto no acting-out8 como na passagem ao ato, podemos encontrar uma estrutura significante que permite fazer uma leitura da relação do sujeito com o ato, assim como observar a dimensão libidinal ou de satisfação, que contempla a inclusão do objeto. No Seminário 10, Lacan (1962/1963) trata da questão das passagens ao ato e de suas relações com a angústia e o objeto pequeno a. Ele começa a abordar o tema ao se propor a demarcar que há uma estrutura da angústia. De acordo com ele, a angústia tem um enquadre. Esse afeto ocorre quando aparece nesse enquadramento um elemento já conhecido, “o que já estava ali muito perto, em casa, Heim9” (LACAN, 1962, p. 87). Este autor acrescenta:

O que é Heim, o que é Geheimnis10, nunca passou pelos desvios, pelas redes, pelas peneiras do reconhecimento. Manteve-se Unheimlich, menos não habituável do que não habitante, menos inabitual do que inabitado (LACAN, 1962, p. 87).

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7 As considerações sobre a passagem ao ato aqui citadas podem ser mais bem esclarecidas com a leitura do capítulo IX de O Seminário, livro 10: a angústia (LACAN, 1962) e também no terceiro capítulo de nossa dissertação de mestrado: CAMPOS, Maria Elisa F. G. Crimes do supereu: da insensatez da lei às suas ficções (2009), acessível no portal da Biblioteca da UFMG.

8 O termo acting-out é o substantivo do verbo to act-out, ambos de origem inglesa. Apareceram na literatura psicanalítica francesa como tradução do termo freudiano agieren, que representa a repetição na transferência, quando o que não foi dito, colocado em palavras, é realizado em ato. Lacan explica que o acting-out é endereçado ao analista e pede uma interpretação.

Essa demarcação do campo da angústia, do seu aparecimento, indica que, a partir do surgimento do Heimlich no quadro que representa o fenômeno da angústia, não podemos crer que a angústia seja sem objeto. Portanto, o Heimlich/Unheimlich, o já conhecido e o estranho, aqui é o objeto pequeno a e sua presença traz o afeto da angústia.

A angústia é esse corte – esse corte nítido sem o qual a presença do significante, seu funcionamento, seu sulco no real é impensável; é esse corte a se abrir, e deixando aparecer o que vocês entenderão melhor agora: o inesperado, a visita, a notícia, aquilo que é tão bem exprimido pelo termo “pressentimento”, que não deve ser entendido como o pressentimento de algo, mas também como o pré-sentimento, o que existe antes do nascimento de um sentimento (LACAN, 1962, p. 88).

É possível supor que a presença do objeto pudesse se verificar no sentimento de estranheza de Ernane. “Não sei dizer por que, mas depois da mudança para a roça, passei a me sentir estranho”. Relevante se faz lembrar que a verdadeira constatação em relação à angústia é que ela não engana, não deixa nenhuma dúvida. E o que se trata de evitar é o que, na angústia, assemelha-se à certeza assustadora. Na aula datada de 19/12/1962, cujo título na publicação consta como “O que não engana”, Lacan declara que o referencial da certeza é essencialmente a ação. Agir é arrancar da angústia a própria certeza, é efetuar uma transferência de angústia. Tal afirmação é de suma importância para compreendermos a noção de passagem ao ato e para tentarmos localizar a posição do sujeito no momento anterior ao ato.

Para esclarecer sobre a angústia, Lacan lança mão de um quadro em que situa como etapa anterior à passagem ao ato um momento de enorme embaraço por parte do sujeito. Esse embaraço foi o que se verificou no caso de Ernane. Ele se dizia estranho, já fazia algum tempo, havia experimentado uma relação homossexual, da qual afirma não ter gostado. Não sabia, tampouco, em que lado da sexuação devia se colocar, se deveria estar no lado masculino ou no feminino, uma vez que havia se colocado como uma mulher na relação homossexual. Passava por um momento de impasse, estava calado, ensimesmado, evitando o contato com as pessoas. É preciso também considerar que a passagem ao ato não é motivada, no sentido de uma causa ou motivo psicológico, nem é ocasionada por um fato exterior. Quando pode ser reconstruída, pela via do simbólico, comprova-se que ela foi desencadeada por palavras ou frases. Essa compreensão é fundamental, já que a passagem ao ato, assim como o sintoma, tem sua conjuntura dramática e suas coordenadas significantes (TENDLARZ, 2008, p. 21).

Podemos situar algumas situações vividas por Ernane à época do crime. Na experiência sexual relatada anteriormente, ele escuta uma fala do homem com o qual se relacionou sexualmente de que a mãe não gostava dele. Por outro lado, relatou também que era, constantemente, obrigado a dormir na cama da mãe. Ao ser indagado sobre isso, responde: “Ela gostava de ver o bem”. Ele repete essa mesma frase ao ser indagado sobre essa afirmação, o que nos parece presentificar algo do objeto olhar nessa cena por ele relatada. Ernane contou ainda que o crime ocorreu após uma conversa com o pai, quando disse a ele que o amava mais que à mãe. Aquele lhe respondeu, assertivamente: “Não, meu filho! Isso não pode acontecer. Vou lhe pedir um favor e você tem que me obedecer! Jamais você pode me amar acima de sua mãe. Mãe é o ser mais sagrado que existe neste mundo!”. Observa-se aqui um imperativo na fala do pai, que pode ter lançado o sujeito à situação de impasse quanto a ter um sentimento diferente do que o prescrito em determinado enquadre. São muitas as coordenadas significantes do caso, mas não se pode deduzir qual delas o terá lançado à passagem ao ato. O paciente não relatou sobre fenômenos elementares como ter ouvido vozes de comando, mas havia algum tempo que dizia que mataria o pai, a mãe e os irmãos, segundo depoimento do pai. Ernane, nos atendimentos, disse que passou a ter pensamentos de morte. Sobre esses pensamentos, dizia que eram insistentes e que não conseguia se desvencilhar deles. À época do crime, vivia apegado a uma bíblia, que lia várias vezes ao dia – o capítulo sobre o Apocalipse, além de ter passado a apresentar um discurso místico- religioso.

Há relatos da tia no processo de que a mãe havia dito, um dia antes do crime, que Ernane estava apresentando comportamentos muito estranhos. Estava isolado, distante, agressivo e havia várias noites que não dormia, deambulando pela casa. Teria passado um dia todo em cima de uma árvore, sabendo que todos o procuravam, só tendo de lá descido à noite. Ia para a escola sempre com blusa de frio com capuz, independentemente da estação do ano. Escondia-se em sala de aula, por detrás desse capuz. Não estabelecia nenhum laço, não tinha amigos, nem colegas na escola. Foi também relatado por outros familiares que o sujeito, antes da passagem ao ato, encontrava-se estranho, com hábitos como conversar sozinho e rir imotivadamente. Vários foram os indícios de que Ernane não estava bem, mas não houve a busca do tratamento anteriormente à passagem ao ato.

Henry Grivois (1991), psiquiatra francês, ressalta que é preciso observar o momento de nascimento da psicose, que se caracteriza por aquele do desencadeamento. Nessa ocasião pode-se observar a passagem ao ato como única solução encontrada pelo sujeito para dar um tratamento ao real do desencadeamento. É possível localizar esse momento na história contada por Ernane como sendo o da entrada na adolescência e o respectivo encontro com o sexual. Diante da necessidade de uma resposta em relação à sua sexualidade, ele se mantém sem saída. Há um momento de extremo embaraço após a relação homossexual que aconteceu em que ele relata: “Fui porque quis, mas não gostei”. Diante das mulheres também não encontra uma posição viril. E nesse seu embaraço vivido no ponto máximo da angústia, retira a vida da mãe, a pessoa mais carinhosa da família, segundo ele. Os índices da psicose podem ser observados em várias evidências no caso de Ernane: a ausência de laço social, as atitudes bizarras, como se esconder do olhar do Outro, seja por debaixo do capuz ou na árvore, o fato de constantemente conversar sozinho, o isolamento, rir imotivadamente, as falas de morte e assassinato, bem como insônia, agitação, etc. Por que tantos indícios não foram considerados ao se estabelecer a classificação do sujeito? Para entendermos um pouco do que se passou, faz-se necessário um giro de volta à história.

Sobre monstros, psicopatas e intratáveis

Observa-se o impasse das equipes quanto ao acolhimento do sujeito que comete um crime denominado de contra a natureza, conforme nos adverte Foucault (2006). O significante monstro passa a ser um dos nomes do sujeito e essa nomeação lhe traz consequências. Percebe-se em Ernane o receio de retornar à sua cidade e ser linchado pela população. Parece-nos importante voltar um pouco à noção de monstro, ainda com Foucault. Em seminário publicado sob o título Os Anormais (1974-75/2001), Michel Foucault, a partir de múltiplas fontes teológicas, jurídicas e médicas, aborda o problema dos indivíduos perigosos que, no século XIX, esteve muito associado ao domínio da anormalidade. Entre os anormais figuravam os chamados monstros, figuras que adquiriram várias facetas, a depender do contexto histórico.

No final do século XVIII e início do XIX, percebe-se uma modificação na concepção do que seria o monstro. Se até então a monstruosidade sempre esteve situada no domínio da biologia, ou melhor, na transgressão da biologia, no século XIX o monstro passa a assumir uma nova faceta que não mais se relaciona à alteração somática e natural. Nesse período, o monstro se torna o monstro moral, figura que contém em si uma natureza criminosa. E é aqui que a história se cristaliza em torno dessa concepção da característica de inumano nos acontecimentos criminais bárbaros, nomeados por Foucault de crimes contra a natureza. Foucault traduzirá também o monstro como um misto de transgressões: dos limites naturais, das classificações, do quadro (ou enquadre, norma) e da lei como quadro (2001, p. 79). Porém, nos dirá o autor que só há transgressão do limite natural, para que haja monstruosidade, quando esta se refere ou questiona certa suspensão da lei civil, religiosa ou divina (Idem). Ou seja, só há monstruosidade quando a desordem da lei natural vem tocar, vem abalar ou inquietar o direito, seja o civil, o religioso ou o canônico. Para Foucault, a monstruosidade questiona o direito, aponta a sua disfunção, pois a partir dela o direito não pode funcionar. Com ela o direito é questionado (FOUCAULT, 2001, p. 80). Conclui que, no fundo, o monstro é a casuística necessária que a desordem da natureza provoca no direito. O monstro é uma infração à ordem da natureza, mas ao mesmo tempo um enigma jurídico.

E é como enigma que Ernane embaraça a justiça e também os serviços da assistência e atenção em saúde mental. Esse embaraço se desloca do sujeito ao outro diante de uma passagem ao ato de tamanha gravidade.

Quanto ao psicopata e intratável, a questão toca a discussão atual sobre as classificações nos manuais de saúde mental, como os DSMs e o CIDs11 que nos encaminham na direção de pensarmos no desaparecimento da clínica psiquiátrica, de acordo com Laia (2012, p. 303). Em seu caráter descritivo de sintomas, esses manuais ignoram a dimensão da subjetividade daquele que procura um médico para queixar-se do seu sofrimento. Em relação à psicopatia ou à atual classificação decorrente desta, o Transtorno de Personalidade Antissocial ou Dissocial, pode-se verificar que o caráter de intratável se reforça cada vez mais. Essa discussão nos coloca as seguintes questões: o que podemos esperar dessas classificações que enclausuram o sujeito em uma nomeação e que fecham os ouvidos daqueles que o atendem? Se se qualifica como intratável, a priori, qual a possibilidade de intervenção? Sabemos que alguns casos podem ter um ponto de intratável na clínica, mas esse elemento não nos é dado a priori. Pode surgir na condução do tratamento e ser colocado como um limite pelo próprio sujeito como, por exemplo, na presença maciça da pulsão de morte, vivida como algo da ordem de um insuportável, pode levar o sujeito à passagem ao ato mais radical – o suicídio. É preciso lembrar que, para além do ato, há um sujeito que deve ser incluído na cena do tratamento. Faz-se necessário recolher, nas finezas ou delicadezas da escuta clínica, o elemento de real, o que foi insuportável para o sujeito e que pode tê-lo levado à passagem ao ato. No caso em tela, parece-nos se relacionar ao encontro com o sexual, na entrada da adolescência, quando a falta de significação para o sexual lança o sujeito na perplexidade (estado inicial da psicose) e, em seguida, à passagem ao ato.

Importante se faz considerar que para a psiquiatria clássica o diagnóstico de psicopatia tinha outro enquadre. Considerado por Kurt Schneider (1965) como manifestações da personalidade, ele define as personalidades psicopáticas a partir de traços, trazendo a impressão de uma observação clínica mais ampla, que inclui traços obsessivos, depressivos, de insegurança, ou seja, traços comuns a várias categorias diagnósticas. Dessa maneira, não se observa em Schneider uma polarização da psicopatia como entidade nosológica típica e sim como manifestações de personalidades diversas.

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11 As considerações sobre a passagem ao ato aqui citadas podem ser mais bem esclarecidas com a leitura do capítulo IX de O Seminário, livro 10: a angústia (LACAN, 1962) e também no terceiro capítulo de nossa dissertação de mestrado: CAMPOS, Maria Elisa F. G. Crimes do supereu: da insensatez da lei às suas ficções (2009), acessível no portal da Biblioteca da UFMG.

É possível verificar todo o cuidado na consideração de Schneider (1965) em relação à formulação diagnóstica do que ele nomeia como personalidades psicopáticas ao advertir em sua obra que os tipos psicopáticos não são diagnósticos, e sobre a relatividade permanente quando se fala dos tipos psicopáticos. O autor critica os diagnósticos afirmando que se referem apenas a um determinado aspecto do homem. De acordo com ele,

as etiquetas atingem apenas certas qualidades do homem concreto, especialmente importantes sob determinado ponto de vista (nem tudo que se denomina com o mesmo termo, é a „mesma coisa? psicologicamente. Pode- se, por exemplo, ser depressivo das maneiras mais diversas). Ademais, deve- se ainda levar em conta que as qualidades ressaltadas pertencem a profundidades inteiramente diferentes. O corte que as atinge chega às vezes às camadas mais centrais, outras vezes permanece mais à superfície (SCHNEIDER, 1965, p. 65, grifos do autor).

Essa consideração de Schneider nos remete a Milner (2006) quando este se refere às classes paradoxais, em que o elemento de subjetividade não se deixa incluir em uma classificação. O autor dirá que talvez a psiquiatria possa construir nosografias, que são igualmente classes de similitudes e de oposição e talvez ela possa também enumerar sintomas, tratados como propriedades caracterizadoras. Mas no instante em que a psicanálise retoma os nomes recebidos nessas classificações, ela sabe, ou deve saber, que se trata aí de um semblante: algo para além subiste e não está esgotado na classe representável (MILNER, 2006, p. 91).

Verificamos em nossa pesquisa sobre o citado diagnóstico (psicopatia) que os teóricos da psiquiatria clássica como Schneider (1965) e Jaspers (1973) advertem-nos sobre o rigor necessário ao estabelecimento de um diagnóstico. Além disso, esses psiquiatras têm uma posição reconhecidamente clínica ao recomendarem que não se façam diagnósticos pautados em apenas um traço ou apresentação (que atualmente podemos dizer comportamental) dos sujeitos. Ambos nos ensinam que somente o caso clínico poderá servir de orientação para o diagnóstico e não apenas sua apresentação fenomenológica/comportamental. Entretanto, a cautela na análise de cada caso foi se perdendo e o que encontramos atualmente, representado pela morte da clínica, em favor de classificações categoriais como as apresentadas pelo atual DSM-IV, caminhando em direção às classificações dimensionais, que serão mais valorizadas no DSM-V, recém- lançado e ainda não traduzido para o português. Pensando na classificação estabelecida no caso de Ernane, parece que ela se distancia, em muito, do cuidado clínico necessário ao caso e, ao se deixar de lado o sujeito, compromete-se a possibilidade do tratamento, em seu caso, de um quadro de psicose. Para Kurt Schneider, ao advertir que os tipos psicopáticos não são diagnósticos, revela-se o cuidado para com o sujeito que pode e deve ser escutado e dizer, ele mesmo, de seus sintomas ou mesmo sobre suas atuações. Quando se distancia desse cuidado, perde-se de vista o próprio caso, tendendo-se a perspectivas de segregação. No caso de Ernane, isso se desvela no encaminhamento para internação psiquiátrica e realização de perícias para confirmarem o diagnóstico de intratável. Essas tentativas de segregação não contribuíram em nada para o efetivo tratamento do sujeito, que só foi escutado em um segundo tempo.

Conclusão

A Ernane restou apenas o silêncio após a passagem ao ato que foi vivida como algo fora do sentido. A possibilidade da fala o coloca em posição de tentar dar um sentido a esse acontecimento que para ele não faz sentido algum. Conforme desenvolvemos anteriormente, o dizer de uma passagem ao ato surge somente a posteriori. Primeiro há a passagem ao ato e depois sua construção (TENDLARZ, 2008, p. 21). Ele atualmente diz: “Como posso ter matado minha mãe? Só pode ser porque eu não estava bem. Mas essa história só me trouxe perdas. De lá pra cá eu só perdi”. Depois do retorno para sua cidade e o acolhimento pelos serviços da rede ele tenta achar seu lugar no mundo: “Quero estudar e trabalhar com meu pai. Quero ajudar minha avó. Vou estudar teologia”. Observa-se que busca também um sentido para esse sem-sentido da passagem ao ato nas explicações divinas. Desde que voltou à sua cidade, está trabalhando em um “lavajato”. Retornou aos estudos e sustenta o discurso de que vai estudar teologia. Com a medicação e o acompanhamento tem se mantido estabilizado.

Esse caso clínico, além de nos trazer a interlocução da psicanálise com o direito, nos coloca frente à problemática das classificações em saúde mental, atualmente. Observa-se que essas se afastam cada vez mais da psiquiatria clássica e que surgem a cada dia novas categorias diagnósticas, como os transtornos e síndromes de todas as espécies possíveis e imagináveis. O DSM-V, recém-publicado, é um exemplo dessa proliferação classificatória, onde podemos encontrar uma nova: o luto patológico que prevê um tempo determinado, de acordo com esse manual, para a conclusão do processo de luto. Essas designações que vêm do campo do outro, ao proferir de que forma deve se ultrapassar determinadas dificuldades (como o exemplo do luto), lançam cada vez mais para fora da cena classificatória o sujeito e sua relação com seu adoecimento. Sabemos que no campo dos diagnósticos a universalização torna-se problemática, que há uma parte dessa universal, dessa classe, para a qual a afirmação universal não funciona. Só podemos recolher essa finesse na escuta do caso a caso, fazendo aí se apresentar o sujeito excluído do enunciado universal com seu Um de Real, seu modo de gozo, que faz exceção e o distingue de todos os outros e o torna uma classe paradoxal, conforme nos aponta Milner (2006).

Sérgio Laia (2012), em uma importante contribuição a respeito das classificações dos manuais contemporâneos, adverte-nos que, diante das categorias do diagnóstico no estilo DSM, encontramo-nos frente ao desaparecimento da clínica, uma vez que a ampla difusão de diagnósticos seria a própria demonstração da impotência de diagnosticar, revelada por esse padrão de classificação. Utilizando-se da categoria de sintoma na clínica psicanalítica poderíamos dizer com Miller12 (2011) que as “coisas de fineza” escapam a essa categorização do DSM. Assim, no excesso de categorias diagnósticas apresentadas pelo DSM, temos a comprovação de que,

mesmo quantificados por estatísticas, esquadrinhados por scanners altamente tecnológicos, articulados a descobertas da genética, os sintomas carregam consigo o que a orientação lacaniana nos permite designar como um irredutível à classificação e que tem a ver com as especificidades, as sutilezas e “finezas” pelas quais o que Freud chamou de “pulsão” faz uso dos corpos para efetivar uma satisfação que Lacan designa como “gozo” (LAIA, 2012, p. 303).

O autor nos fala sobre a incomensurabilidade do sintoma para nos lembrar de que há um real em jogo na cena da vida, sem o qual o diagnóstico e o tratamento seriam mera ortopedia. O caso Ernane nos revela que as questões ligadas à clínica das passagens ao ato, cada vez mais frequentes na contemporaneidade, embaraçam os manuais diagnósticos que, ao se orientarem apenas por dados sintomáticos e, principalmente, comportamentais, excluem dessa forma, cada vez mais, o sujeito em questão no ato.

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12 Faz-se aqui referência ao seminário de orientação lacaniana, ministrado em Paris por Jacques-Alain Miller, no ano de 2011: Coisas de fineza em Psicanálise.

Observa-se em relação ao diagnóstico citado, o da psicopatia, como sua evolução em sucessivos manuais foi se tornando cada vez mais sociológica e comportamental - a partir do DSM-III, retirando-se as sutilezas que apresentava na classificação de Kurt Schneider. Para classificar Ernane como um psicopata ou monstro, não foi preciso sequer obedecer às orientações do DSM-IV, que adverte que, para classificar alguém sob esse diagnóstico (atual transtorno de personalidade antissocial), é necessário que tenha pelo menos 18 anos de idade. O monstro que aparece na arqueologia de Foucault (2001) ainda habita o século XXI. Ele pode, por vezes, reaparecer em algumas classificações, como a do atual transtorno de personalidade antissocial e nos cegar quanto a querer saber um pouco mais sobre o sujeito que resta por detrás de sua apresentação assustadora. Foi assim com Ernane e com muitos outros casos de crimes que horrorizam a sociedade e a justiça. O caso aqui retratado se faz exemplar para tentarmos abordar a diferença que há entre estabelecer um diagnóstico, com todo rigor clínico necessário, e fazer classificações, conforme prescrevem os manuais contemporâneos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPOS, M. E. F. G. (2009) “Crimes do supereu: da insensatez da lei às suas ficções”. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FOUCAULT, M. (1974-75/2001) Os anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes.

GRIVOIS, H. (1991) Psychose naissante, psychose unique? Paris: Masson.

JASPERS, K. (1973) Psicopatologia Geral. Tradução de Samuel Penna Aarão Reis e Revisão de Paulo da Costa Rzezinski. Livraria Atheneu S/A: Rio de Janeiro, 1973. V. 2, p. 739-753.

LACAN, J. (1962-63/ 2005) O seminário, livro 10: a angústia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LAIA, S. A. C. de (2012) “Coisas mensuráveis e „coisas de fineza?: a classificação dos transtornos mentais pelo DSM-V e a orientação lacaniana”. In MARTELO, A.,

SANTIAGO, J & SANTOS, T. C. dos (orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica? Psicanálise, ciência e discursos da ciência. Belo Horizonte: Cia de Freud.

MILLER, J. (1993) ”Jacques Lacan: observaciones sobre su concepto de pasaje al acto”. In: ______. Infortunios del acto analíctico. Buenos Aires: Atuel. p.p. 39-55.

MILNER, J-C. (2006) Os nomes indistintos. Tradução: Procópio Abreu. Editor: José Nazar. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006, p. 81-100.

SCHNEIDER, K. (1966). Psicopatologia clínica. Tradução da sétima edição alemã de Emanuel Carneiro Leão - 2. Ed. -. São Paulo: Editora Mestre Jou, p. 43-74.

TENDLARZ, S. E & GARCÍA, C. D. (2008) A quien mata el asesino? Buenos Aires: Grama Ediciones.
Recebido em dezembro de 2013
Aceito em fevereiro de 2014

 
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