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. No decorrer da história do cinema, diversos diretores se apropriaram de técnicas e narrativas diferenciadas, para tentar expressar não somente os sentimentos e vivências do louco, como também para apontar questões mais amplas como os preconceitos, estereótipos, a exclusão, a violência, enfim, uma série de questões relacionadas aos valores de uma sociedade em relação à loucura e ao próprio sistema na qual estava inserida, criticando ou representando uma determinada ideologia responsável pela imagem acerca da loucura no mundo.
. Segundo Telles, GABARD registrou cerca de quatrocentos e cinqüenta filmes que abordam a questão da loucura e da psiquiatria. (TELLES, 2004).
. Tomando como referência o cinema do século XX, muitos desses filmes revelam as formas de tratamento destinadas ao louco dentro da instituição manicômio. No entanto, pouquíssima bibliografia foi dedicada a este tema específico. A maioria dos trabalhos aborda a questão da loucura de uma forma mais ampla, o que foi um dos motivos da escrita desse artigo.
. O tema da loucura, por ser muito polêmico e objeto de grandes discussões, tem sido amplamente representado nas artes e discutido em várias esferas, no cinema, na ciência, na política, na literatura, na história e principalmente entre os profissionais de saúde mental, que não tem um entendimento unânime no que concerne às formas de tratamento mais adequadas para o louco.
. A partir da leitura da “História da Loucura”, de Foucault, compreende-se que a noção de loucura é construída a partir dos valores, relações de poder e ideais da sociedade, que podem se alterar de uma época para outra, assim como de uma sociedade para outra. Portanto, o conceito de loucura é atravessado por uma série de variáveis: ideológica, política, religiosa, social, econômica, que vão interferir na sua representação e na abordagem do louco.
. Além da literatura, o cinema, como documento e arquivo de registro, constitui-se enquanto fonte histórica sobre a temática do louco no manicômio, pois retrata as modificações que se deram acerca dessa representação na história, estabelecendo uma relação entre o filme e a realidade da sociedade da qual pertence.
. Benoski (2004) lembra que o cinema pode apontar transformações na visão sobre o louco, que podem ser demonstradas a partir da análise de filmes em períodos diferenciados.
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“Se considerarmos as diferenças de tratamentos para a loucura mostrada pelos filmes em um espaço de tempo tão curto, o que dizer de uma produção da década de 1930, que considerou a morte como meio de sanar o problema da loucura (lembrar do filme de Frankstein), e um do início do século XXI que aponta o próprio doente como seu médico (uma mente...)? São essas transformações inerentes a nossa sociedade que o cinema se apropria e representa. Não se pode esquecer que são valores, regras, normas do conjunto social, que as produções cinematográficas aprisionam, transformam e apresentam ao espectador. O cinema apresenta através de suas histórias como pensamos o doente mental, como tratamos, e principalmente, como o controlamos.”(BENOSKI, D. 2004, p. 125). |
. A partir do cinema, podemos também perceber denúncias das irregularidades dentro dos manicômios, assim como os estereótipos do louco, como aquele que é impróprio para o convívio em sociedade, elementos que são retratados através da narrativa cinematográfica, em vários filmes. Diversos autores entendem que a transmissão desses elementos pode influenciar na visão acerca da loucura e do manicômio na sociedade.
. Em seu trabalho sobre a doença mental retratada no cinema, Gadelha e Paiva colocam que as mídias audiovisuais têm um papel importante na formação do imaginário social sobre a loucura.
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“Partimos do pressuposto que os audiovisuais constroem clichês e estereótipos sobre o louco e a loucura, mas ao mesmo tempo podem se constituir enquanto vetores de informação sobre os transtornos psíquicos, levando a uma visão mais objetiva, racional e sensível sobre a doença mental; esta é uma hipótese que perseguimos ao longo da nossa investigação” (GADELHA; PAIVA, 02). |
. São notórias as semelhanças da representação do inadaptado como louco no manicômio, retratadas em filmes, como por exemplo, O Estranho no Ninho (One Flew Over the Cucko´s Nest, 1975, EUA) de Milos Forman e Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1972, EUA) de Stanley Kubrick, filmes produzidos no final da guerra do Vietnã, em uma época em que a violência estava sendo questionada em vários setores. Nesta época, a psiquiatria e seus métodos estavam sendo contestados pela antipsiquiatria, movimento que denunciava o tratamento perverso e punitivo fornecido ao louco pela medicina da época.
. O Estranho no Ninho, de 1972, baseado no livro homônimo, aborda a história de um ex-presidiário que se encontra em fase de avaliação psiquiátrica, que dá entrada em um manicômio e começa a contestar o tratamento moral, punitivo e perverso, praticado pela enfermeira com os pacientes internados.
. O filme de Kubrick ilustra um tratamento baseado em técnicas comportamentais mais próximas de uma “lavagem cerebral”, aplicadas a um criminoso, que é encaminhado a um hospital psiquiátrico, como forma de adaptá-lo ao sistema.
. Ambos os filmes levantam a questão da representação do louco como o inepto social, incapaz de seguir as normas sociais e que deve ser excluído da sociedade e adaptado ao sistema, seja através de uma lobotomia no filme de Forman ou da lavagem cerebral feita com o personagem de Kubrick. Com isso, esses diretores, mais que denunciar as atrocidades dos tratamentos aplicados, estavam provocando a sociedade para pensar nos valores e na violência de um sistema.
. Assim também temos o brasileiro Bicho de Sete Cabeças (idem, 2000, Brasil), de Laís Bodanzky, que denuncia as irregularidades do manicômio, como o tratamento de eletrochoque dado a um paciente usuário de maconha, apontando o fim punitivo mascarado de terapêutico, como temática do roteiro.
. Como esses filmes, muitos outros apresentam o louco como aquele que rompe com os padrões de normalidade de uma sociedade que o exclui por não concordar com seu comportamento transgressor.
. Em De Repente no Último Verão, (Suddenly, Last Summer, EUA, 1959), a temática do louco, como aquele que incomoda a família e a sociedade e por esse motivo, objeto de exclusão, se repete. Desta vez, a personagem principal, guarda um segredo, que a impactou a ponto de entrar em crise. O segredo da homossexualidade de um primo, que não poderia ser revelado, aparece como o motivo principal da loucura da personagem, que é internada em um manicômio por sua tia, a fim de preservar a “honra” da família do filho homossexual, que não poderia ser exposto. A lobotomia neste caso é a.solução “encomendada” pela tia para calar o segredo guardado pela protagonista, considerada louca pela família.
. O filme Frances (idem, EUA, 1982), também mostra a pressão exercida pela família da protagonista, para que a mesma seja internada em um manicômio e submetida aos efeitos irreversíveis da lobotomia.
. Em Bedlam, (idem, EUA, 1946), o diretor de um manicômio em Londres, no ano de 1761, trata os pacientes com crueldade, utilizando-se de suas enfermidades para serem expostos em espetáculos na cidade, para a diversão da classe alta, onde são observados com distância e horror, sendo objetos do riso alheio.
. A personagem principal, ao saber disso, tenta mudar esta situação, acabando internada no manicômio pelos médicos, que a qualificam como louca.
. Em Paixões que Alucinam (Shock Corridor, EUA, 1968), de Samuel Fuller, o protagonista do filme, a fim de fazer uma matéria para uma revista que poderia lhe conceder um prêmio cobiçado, resolve fingir-se de louco para ser internado e descobrir quem matou um paciente assassinado no mesmo hospital. Após passar pelo tratamento dentro do manicômio e ser maltratado, acaba louco como os outros internos, permanecendo na instituição.
. Em A Cova da Serpente (Snake Pitt, EUA, 1948), Olivia de Havilland, que recebeu o Oscar de melhor atriz por este filme, interpreta uma paciente que é internada em um manicômio, onde presencia a violência e os maus tratos vividos pelos outros internos, a quem tenta ajudar. Tanto neste filme como em De Repente no Último Verão, já verificamos a influência da psicanálise através da idéia de “cura pela fala”, pois em ambos os filmes há uma tentativa de fazer com que a paciente se recupere através da fala. No entanto presenciamos a aplicação de eletroconvulsoterapia como uma das terapias mais usadas da época. A lobotomia também aparece como uma solução para os problemas mais graves, geralmente com uma conotação assustadora, desejada pela família, mas clinicamente não indicada para o paciente.
. Quando Fala o Coração (Spellbound, EUA, 1945), do mestre Hitckcock, é outro filme que aborda a questão da loucura a partir de uma abordagem influenciada pelas idéias de Freud.
. É possível perceber, os valores e ideais da sociedade, a partir da forma que são transmitidos pelo cinema. Analisando esses filmes, pode-se dizer que eles tentaram a partir da narrativa e das técnicas cinematográficas, registrar um certo tipo de denúncia às formas de tratamento do louco.
. O cinema representa um pensamento, reproduzindo conceitos que mudam durante o tempo. Constitui-se assim, enquanto arquivo de importância histórica e como fonte de pesquisa do tema da loucura, que se revela de formas diferenciadas, ao longo da história.
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“Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do presente. Neste sentido, pode-se falar de um presentismo na construção histórico-cinematográfica, fenômeno já assinalado por filósofos da história, como Benedetto Croce, e historiadores, como Collingwood, em relação ao discurso histórico”. (NOVA, 12) |
. Percebemos então, na história do cinema, a evolução do pensamento do homem, as ideologias dominantes que regulam esse pensamento e influenciam o modo de viver da sociedade, assim como os conceitos que confrontam esses modelos. A narrativa cinematográfica é atravessada pelas diretrizes políticas, ideológicas, econômicas, sociais, religiosas, tecnológicas, enfim, históricas, presentes em seu tempo. Portanto, ao analisar um filme, é necessário perceber todo o contexto no qual o filme se insere, os recursos utilizados na narração, além da mensagem que pretende transmitir ao público.
. No livro “De Caligari a Hitler: Uma história do Cinema Alemão”, Kracauer, ao estudar os filmes alemães produzidos após a primeira guerra mundial, estabelece uma relação entre a sociedade e o cinema, expondo suas idéias de como a história alemã do pós -guerra influenciou a construção do cinema expressionista e de como a história vivida por uma sociedade pode ser retratada através do cinema.
. Kracauer chama atenção para a contribuição dos estudos do cinema para a compreensão do comportamento das massas, dos dispositivos psicológicos, atitudes predominantes e tendências internas de um povo.
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“Tenho razões para acreditar que o uso aqui feito dos filmes como um meio de pesquisa pode ser proveitosamente estendido aos estudos sobre o atual comportamento das massas nos Estados Unidos e em outros países. Também acredito que estudos deste tipo podem ajudar na elaboração de filmes - sem falar nos outros meios de comunicação-que irão efetivamente colocar em prática os objetivos culturais das Nações Unidas“ (KRACAUER, 1988, 07). |
. Mais adiante, ressalta:
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“O que os filmes refletem não são tanto credos explícitos, mas dispositivos psicológicos- essas profundas camadas da mentalidade coletiva que se situam mais ou menos abaixo da dimensão da consciência. É claro que revistas populares, e programas de rádio, best-sellers, anúncios, modismos na linguagem e outros produtos sedimentares da vida cultural de um povo também fornecem informações valiosas sobre atitudes predominantes, tendências internas difundidas. Mas o cinema excede a todas essas mídias”. (KRACAUER, 1988, 18) |
. Antes de chegar a essas conclusões, Kracauer analisou vários filmes alemães, entre eles, o Gabinete do Doutor Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari, Alemanha, 1919), que considerou como sendo o arquétipo de todos os futuros filmes alemães do pós-guerra.
. Além de ser reflexo de uma época, o cinema pode se apresentar como uma linguagem metafórica das vivências, do comportamento e do pensamento de um povo, desde o roteiro, até aspectos mais sutis, como a fotografia, a montagem, os movimentos de câmera, o cenário, o figurino, a construção dos personagens.
. Pensando em como o cinema pode ser uma fonte de pesquisa para investigação do pensamento de uma sociedade à qual toma como sistema referencial, os inúmeros filmes que abordam a figura do louco dentro do manicômio podem também trazer elementos para se analisar o contexto e o pensamento de uma sociedade.
. Chama atenção nos filmes que trabalham com essa temática, que muitos anos antes do surgimento do movimento da luta antimanicomial, militante de uma sociedade sem manicômios, inúmeros filmes retrataram o manicômio de uma forma negativa, criticando-o e denunciando tratamentos perversos e desumanos dados ao louco, revelando também um preconceito da sociedade com pessoas que não se encaixavam nos padrões exigidos de uma época, identificando os inadaptados à figura do louco. E na realidade, os primeiros movimentos de mudança no tratamento do louco, iniciaram no pós-guerra, mas só atingiram a radicalidade da reforma, com o italiano Franco Basaglia, em 1971. Isto aponta que o cinema já antecipava esse questionamento, bem antes de se pensar nas transformações do tratamento do louco. Esta antecipação demonstra como o cinema é importante como fonte histórica de pesquisa, podendo produzir questionamentos, reflexões, constituindo-se enquanto uma arte que tem influência na formação de opinião, podendo preceder transformações significativas na sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TELLES, Sérgio. (2006) O Psicanalista Vai ao Cinema: Artigos e ensaios sobre Psicanálise e Cinema. São Paulo: Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda.
FILMOGRAFIA
O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari, 1920)
Direção: Robert Wiene
Quando Fala o Coração (Spellbound, EUA, 1945)
Direção: Alfred Hitchcock
Bedlam (idem, EUA, 1946)
Direção: Mark Robson
Na Cova da Serpente (Snake Pit, EUA, 1948)
Direção: Anatole Litvak
De Repente no Último Verão (Suddenly, Last Summer, EUA, 1959)
Direção: Joseph L. Makiewicz
Paixões que Alucinam (Shock Corridor, EUA, 1963)
Direção: Samuel Fuller
Laranja Mecânica (Clockworck Orange, Inglaterra, 1971)
Direção: Stanley Kubrick
Estranho no Ninho (One Flew Over The Cuckoo's Nest, EUA, 1975)
Direção: Milos Forman
Frances (Idem, EUA,1982)
Direção: Graemme Clifford |
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