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criança como dejeto: uma posição entre a perversão e o desejo
A partir das novas configurações e arranjos do contemporâneo, psicólogos, psicanalistas, sociólogos e diversos outros sujeitos que supõem algum saber, se impactam ao constatar um momento em que a sociedade se encontra refém do imperativo implacável de gozar. Nesse cenário, em que todo e qualquer sujeito deve se apresentar como aquele a quem qualquer gozo é possível - e que também passa a se oferecer como objeto disponível ao gozo do Outro - o efeito colateral que chama a atenção é o fato de que isso tem tornado o homem cada vez menos sujeito ao assumir, cada vez mais, essa posição determinada, socialmente, a partir das influências do discurso capitalista atual.
Tal como uma peste, o tempo do gozo se impõe a todos, tornando-se parte reguladora das novas formas de se fazer laço e misturando-se como mais um fator determinante do sujeito inconsciente e de seu desejo. Assim, a promessa de se ter um gozo pleno se instaura também em meio aos romances familiares, ditando novas regras e novas funções para seus personagens. A urgência de relações que atendam às posições de gozo de cada sujeito é agora o que determina a forma do se relacionar e a maneira como cada um exercerá seu papel na cena familiar.
Ao refletirmos acerca dessas questões, o que muitas vezes constatamos é que no momento em que homem e mulher, pai e mãe, passam a protagonizar o comando do gozar, começam também a digladiarem-se em uma disputa interminável de quem deve assumir o pódio imaginário de vencedor de seu próprio gozo. Tal disputa muitas vezes configura-se como fator responsável pelo desatar de um laço amoroso na medida em que não é mais possível que se renuncie a uma parcela de possibilidade de satisfação, o que seria necessário para a manutenção do laço. Assim, diante tal impossibilidade, para que os laços se mantenham, os sujeitos recorrem a diversos outros objetos - por exemplo, os filhos do casal - que tornem esta relação possível, os descartando caso não sejam capazes de desempenhar tal função.
Em um romance familiar em que os personagens encontram-se marcados pela neurose, essa situação pode ser devastadora para a criança, mas caso os sujeitos localizem-se em outras estruturas psíquicas, tal devastação pode ser potencializada, na medida em que os pais encontram-se completamente reféns das amarrações rígidas da estrutura, restringindo suas construções imaginárias, simbólicas e seu investimento de libido unicamente nas questões envolvidas no litígio pela disputa do gozo, se tornando incapazes de dialetizar tal questão. É esse cenário que se verifica no caso aqui apresentado, em que se constrói e, posteriormente, se aniquila o enlace de um casal, culminando na consequência de uma criança ser localizada somente enquanto mero dejeto, resto dessa relação.
Uma vinheta, reconstruída a partir dos discursos de uma família, explicita as diversas consequências psíquicas que incidem sobre o sujeito. Aqui, o imperativo do gozo acaba por influenciar ou determinar não só a própria estrutura psíquica dos sujeitos como também a posição que uns passam a ocupar para os outros ao construir de seus laços, atravessando também a posição que a criança assume na cena familiar. Tal como Lacan (1969/2003) indica a criança, enquanto representante de um sintoma parental ou enquanto corpo condensador da fantasia materna, tais condições passam também a ser determinadas pela exigência de gozar.
Quando o casal se conheceu, a mulher, apesar de caracterizar o companheiro com certo horror, como agressivo e com dificuldades de lidar com frustrações, reagindo de forma violenta, manteve relacionamento com este, oferecendo-se não só como companheira, mas também como vítima de seu descontrole emocional. Ao dizer de sua escolha amorosa, a mulher demonstra mesmo certa satisfação com a posição ocupada, considerando que todas as outras mulheres do grupo o desejavam, reconhecendo como uma conquista ser a mulher escolhida pelo líder.
A partir desse pequeno fragmento do discurso da mulher, é possível aproximarmo-nos acerca do que Lacan denominou como discurso da histérica. Ao saber-se dividida (S/ como agente), a histérica reconhece sua falta e procura, incessantemente, preenchê-la. Para tanto, constitui alguém como messias, como quem supostamente detém o significante mestre. Parece-nos que é exatamente nessa posição, de mestre, que a jovem em questão tenta colocar o companheiro, o que talvez tenha sido facilitado pelo próprio homem que, por sua postura agressiva, inicialmente, já se oferecia enquanto sujeito capaz de responder a essa posição, possivelmente o que coincidia com o seu modo de gozo.
O que a histérica quer, afirma Lacan,
é um mestre. A tal ponto que podemos indagar se a invenção do mestre não partiu dai. Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Quer um mestre sobre o qual ela reine. (grifos nossos, LACAN, 1969-1970 / 1992, p. 122).
Assim, o lugar de mestre é buscado e sustentado enquanto é legitimado pela histérica.
Mesmo com uma vida conjugal conturbada e instável, o casal engravidou. Contudo, a gravidez ou mesmo o nascimento da criança, não fez com que a violência fosse interrompida. O relacionamento persistiu nessas condições por, aproximadamente, seis anos, quando a mulher decidiu sair de casa, levando consigo a criança do casal. Diante de tal situação, o homem passou a apresentar diversos comportamentos, anunciando a demanda de obter a guarda da criança claramente como uma tentativa de reatar seu romance e, nessa medida, reconquistar sua posição de mestre da mulher.
A dificuldade desse homem em deparar-se com a angústia de ser abandonado pela companheira faz com que busque meios de se defender do afeto, da depressão ou mesmo de uma fragmentação de si mesmo, tal como o que se entende como uma montagem sintomática perversa. Nestes casos, o sujeito tem como finalidade estancar o desenvolvimento de uma angústia psicótica, preenchendo uma falta que, de outro modo, torna-se escancarada quando se submerge na desorganização e na fragmentação do ego na psicose (FERRAZ, 2011, p.41). Quer dizer, ser expulso do lugar de mestre torna esse sujeito distante demais da possibilidade de responder ao dever de gozar, chegando mesmo ao ponto de ser ameaçado quanto a sua estabilidade psíquica.
Como uma estratégia, diante da recusa desta mulher de permanecer no relacionamento, o homem a acusava, de maneira agressiva, de não amar a criança do casal. Contudo, ao dizer sobre isso não aparece angústia e sim o ato. Diante da separação, rapidamente iniciou um novo casamento. Tais movimentos podem ser interpretados como tentativas desse homem de colocar-se “fora” da cena do abandono, protagonizado pela ex-companheira.
O perverso trabalha para não desejar, já que o desejo remete para a angústia de castração, da qual todo o seu esforço é para se evadir. (RUDGE, 2004, p. 6).
Acreditando possuir o que o outro procura, ele tenta fazer com que o gozo prevaleça, com que o véu não caia. Produzindo deste modo, uma defesa contra o real – da falta, da castração... Cristaliza-se o desejo identificando-se ao objeto, prestando-se a fazer o Outro gozar, sustentando uma relação essencial. (SILVA, 2003).
O que incide sobre esse casal, tanto no que se refere ao seu enlaçamento quanto à separação, pode ser exatamente o que tentamos discutir aqui, a saber, o imperativo de gozar. Assim, a mulher enlaça-se a este homem na medida em que este responde ao seu modo de gozo. Ao mesmo tempo, após a separação, o homem insiste em se oferecer como objeto capaz ainda de possibilitar esse gozo, como aquele que poderia preencher suas faltas, o que possivelmente responde à sua própria posição de gozo.
Na medida em que o homem busca se reposicionar como o mestre da ex-companheira, passa a recorrer a outros dispositivos, usando a criança do casal, localizando-a também como um objeto capaz de novamente enlaçar a ex-companheira. O movimento que este homem faz parece ser o de marcar a falta na ex-mulher como mãe.
Na abordagem lacaniana da perversão, a posição de objeto que causa o desejo é buscada, na medida em que é o outro quem deve sustentar o lugar de sujeito dividido, sujeito à angústia. Gerar a angústia no outro, levá-lo a fracassar, são meios de que o sujeito, assentado num terreno basicamente imaginário, lança mão para evadir-se da própria angústia. Trata-se mesmo de uma repartição, o que se torna manifesto quando o S/, um dos pólos do matema da fantasia, o sujeito em sua divisão, sujeito à angústia, é desempenhado por um outro, enquanto que o outro pólo deste matema, o a como causa de desejo, fica no campo do sujeito.... Para evadir-se desta divisão o mecanismo perverso busca dividir o outro. É no ato que a divisão é remetida ao outro e que o sujeito se coloca como objeto, um ato de fala ou discurso que deve ser sempre renovado. (RUDGE, 2004, p. 6-7).
Assumir, a todo momento, a posição de objeto, negando suas próprias faltas, além da estrutura psíquica característica apontada pela psicanálise, pode também ser entendida como uma consequência dos efeitos da exigência de se gozar. Neste tempo do gozo é proibido ao sujeito não responder de forma afirmativa a esta exigência. Assim, é vetado ao sujeito a possibilidade de constatar sua falta. Ao contrário, todos devem estar sempre prontos a se preencherem e a se oferecerem como objeto capaz de preencher aquilo que o Outro precisa.
Ao nomear a mãe como doente e negligente, o homem evidencia nela uma falta. Nesse movimento, ao mesmo tempo em que aponta a falha do outro ele recobre seu próprio buraco, recusando sua divisão ao se colocar puramente como objeto, mais uma vez, capaz de preencher a mulher. Esses discursos que apontam a falha no outro, assim como destacado por Rudge (2004), repetem-se de maneira renovada, nos quais, sucessivamente, esse homem apresenta atitudes e características da ex-mulher, evidenciando e potencializando uma depreciação da ex-companheira. O mecanismo elaborado por este sujeito parece ser o de reconquistar a mulher na medida em que esta - que devido à suas falhas seria incapaz de cuidar da criança - poderia optar por reatar o relacionamento na intenção de estar próxima da criança do casal, objeto inicialmente identificado como algo que poderia enlaçar essa mulher.
A reviravolta nas percepções que a mulher tem do ex-companheiro pode ser localizada como o que o desestabiliza. Ao se ver destituído da posição de mestre e, consequentemente de objeto, no qual era colocado por ela, se sente ameaçado e, por isso, desenvolve estratégias para recuperá-la, usando a criança nessas tentativas. Contudo, as investidas do homem parecem falir na medida em que esta mulher apresenta-se de maneira claudicante quanto ao seu próprio desejo em relação à criança. Nessa medida, durante os atendimentos, ficamos em dúvida quanto ao real desejo de permanecer com a guarda, chegando mesmo a assegurar, apesar de todas as dificuldades e das características do ex-marido, o lugar do ex-companheiro como um bom pai.
Em reflexo a sua configuração familiar, em que esta mulher não ocupou, para seus pais, o lugar de objeto desejado, esta, agora mãe, parece repetir tal vacilo diante da filha. Assim, transita entre o aparente desejo de ficar com a criança e o completo abandono da causa. Já enquanto mulher e companheira, é possível pensar que, a partir da maternidade, se dá conta da posição de mestre em que localizava o companheiro e, diante dessa percepção, passa a desconstruir esse lugar, assim como também modifica as fantasias que tem acerca desse homem, optando então por encerrar a união do casal. Em consequência, parece identificar a criança como representante das escolhas que fez, passando a rechaçá-la, não a incluindo em seus planos para uma nova configuração familiar.
Ao contrário da função que este casal esperava que a criança exercesse - objeto capaz de manter o laço amoroso entre o casal -, seu nascimento faz com que o olhar e o mestre caiam, e, consequentemente, cai também a criança, eleita agora como dejeto incapaz de sustentar a relação entre seus pais ou o estatuto que estes ocupavam como sujeitos que respondiam ao gozo um do outro. Assim, a criança apresenta-se como um resto desse litígio. Nesse sentido, seu desejo desaparece. Ninguém parece realmente preocupar-se com aquilo que ela demanda – estar com sua mãe. Seus pais mostram-se tão interessados em combaterem, ou ignorarem, um ao outro, que, nessa relação, seu desejo não é subsumido.
As consequências desse embate entre homem e mulher pela conquista de seu próprio gozo parecem terem efeitos nesta criança que passa a apresentar uma plasticidade excessiva de adaptação quanto a seu novo núcleo familiar, demonstrando possuir recursos forjados. Isso sugere que a constituição psíquica desta criança, como já mencionado anteriormente, passa a ser regulada, mesmo que indiretamente, pela incidência do imperativo de gozo. Assim, por não responder à posição de objeto correspondente às fantasias dos pais, a criança passa a responder a um não-lugar, buscando meios de conquistar o olhar dos pais, mesmo que para isso precise recorrer ao cinismo.
Os efeitos evidenciados por esta família diante da atual conformação cultural – a saber, o tempo em que todos os sujeitos devem buscar a conquista de um gozo pleno -, é se oferecerem como puro objeto ao desejo que lhe é imposto por um Outro. Os personagens dessa família parecem ser a caricatura da maneira como o “goze a qualquer preço” tem determinado o modo de se fazer laços e também a constituição psíquica dos sujeitos. Isso é evidenciado na medida em que a criança do casal não possibilitou aos pais a chance de serem alçados à posição de sujeitos capazes de usufruir do gozo desejado. Neste momento, é descartada.
Isso reflete o discurso capitalista que, norteado pela exigência de gozar a qualquer custo, passa a se personificar não só nas relações capitalistas mesmo, enquanto influência sobre os objetos materiais e descartáveis, mas também sobre as relações entre os sujeitos, em que qualquer um pode ser visto como dejeto, assim como essa criança. Nessa medida, é possível localizar, com esta vinheta, que a obrigação de gozar faz com que as funções parentais possam ser deslocadas de sua importância, modificando a maneira como as relações familiares passam a ser constituídas e em que sentido os filhos são, ou não, localizados enquanto falo ou objeto de desejo de seus pais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRAZ, F. C. (2011). “As montagens perversas como defesa contra a psicose”. ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, v. 29 (1), Brasília: pp. 41-48.
LACAN, J. (1969-1970/1992). O seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
__________ (1969/2003). “Nota sobre a criança”, in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 369-370.
RUDGE, A. M. (2004). “Aspectos do discurso perverso”. Revista del Centro Psicoanalítico de Madrid on-line, ano 2014, n. 6. Disponível em http://centropsicoanaliticomadrid.com/index.php/revista/78-numero-6.
SILVA, M. C. (2003). “Uma posição subjetiva: A perversão como defesa”. Apresentado na XI Jornada Interna do IPSM-MG. Disponível on-line em: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/instituto/memoria.htm.
Recebido em: 22 de Maio de 2015
Aceito em: 26 de Agosto de 2015
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