ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 19 Janeiro à Abril de 2013
 
   
 
   
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AIDS e Angústia de Morte: A Construção do Caso Clínico

AIDS and Death Anguish: Clinical Case Construction

 
     
 

Michelle Karina Silva
Mestre em teoria psicanalítica pela UFMG
Coordenadora do Serviço de Psicologia Clínica do Hospital Risoleta Tolentino Neves
E-mail: michelle.psicologiaufmg@yahoo.com.br

Vanessa Biscardi Matos
Psicóloga
Residente Multiprofissional em Saúde no Hospital das Clínicas da UFMG
E-mail: vanessabiscardi.psi@gmail.com

 

Resumo: Este trabalho objetivou articular subsídios teórico-técnicos sobre a angústia de morte vivida por pacientes com o diagnóstico de HIV em situação de internação hospitalar. Para tanto, é feita inicialmente uma apresentação teórica geral sobre a doença tratando de suas características biológicas, bem como sobre alguns dos desdobramentos sociais e psicológicos envolvidos. Em seguida, faz-se uma reflexão teórica sobre a construção do caso clínico no hospital a partir do conceito de angústia de morte, de modo associado ao processo de diagnóstico da infecção pelo vírus. Posteriormente, é enfatizada a interface da teoria com a experiência clínica a partir da metodologia de construção de caso clínico, desenvolvida no serviço de psicologia, com o relato do acompanhamento psicológico de um paciente em um hospital de urgência e emergência da rede pública de Belo Horizonte, Minas Gerais.

Palavras-chave: AIDS, Angústia de morte, Assistência Hospitalar, Métodos, Psicanálise, Síndrome de Imunodeficiência Adquirida.

Abstract: This study intent to articulate theoretical and technical subsidies about death anguish experienced by patients with a HIV diagnosis in situation of hospitalization. For that, it is initially made a general presentation about the disease considering their biological characteristics as well as social and psychological ramifications. Then, there is a theoretical reflection on the construction of the clinical case in hospital from the concept of death anguish associated with the diagnostic process of virus infection. Later, it is emphasized the interface between theory and clinical experience through the methodology of clinical case construction, developed in psychology service, with the account of the psychological treatment of a patient in public urgency and emergency hospital of Belo Horizonte, Minas Gerais.

Keywords: AIDS, Death Anguish, Hospital Care, Methods, Psychoanalysis, Acquired Immunodeficiency Syndrome.

 
 


AIDS e Angústia de Morte: A Construção do Caso Clínico

INTRODUÇÃO

"Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte". (FREUD, 2006/1915)

Alguns Aspectos sobre o HIV/AIDS

Como já sabido, a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é uma doença crônica causada por infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e responsável pela destruição progressiva do sistema imunológico, desencadeando infecções oportunistas que podem levar o infectado à morte (SOUZA, T.R.C., 2008). Em seu curso de descoberta, a doença sofreu associações com diversas dimensões de moralidade condicionadas ao exercício da sexualidade, sendo concebida no início dos anos 1980 como um mal que afetava especificamente a população de homossexuais americanos. Mesmo com a ampliação do conhecimento sobre a ação do vírus, a AIDS recebeu uma forte associação com a morte em função da ausência de tratamentos com perspectiva curativa (LEPRI, P.M.F., 2007).

Além desse declínio da vida biológica, ser diagnosticado como doente de AIDS ou soropositivo significava também o declínio da vida social. Isto porque, "o pânico diante da nova pandemia provocou inúmeras reações sociais, numa tentativa de isolar o vírus, sendo a exclusão social a mais empregada e menos eficaz, cujos efeitos marcaram para sempre a história da doença" (LEPRI, P.M.F., 2007).

Com a evolução do conhecimento sobre a doença e da farmacologia associada ao tratamento do HIV, foram descobertas as "drogas antirretrovirais específicas e antibióticos ou quimioterápicos, utilizados para o manejo de infecções oportunistas e neoplasias" cujo objetivo está associado "à supressão da replicação do HIV, por meio do bloqueio de diferentes etapas do ciclo reprodutivo viral" (MARTINS, J.R.P., 2004). Em decorrência desses avanços quanto ao tratamento da doença e ao aumento da expectativa de vida, "o viver e o conviver com a AIDS trouxeram novos elementos de discussão à sociedade" (LEPRI, P.M.F., 2007).

Assim, o anterior caráter excludente dessa doença devido à concepção moralista a ela associada, deu lugar a novas discussões sobre valores e temas polêmicos como sexo e uso de drogas. Esse acontecimento relaciona-se ao que Lepri, 2007 denomina "caráter tridimensional da AIDS". Ou seja, trata-se de uma doença que tangencia o corpo biológico, o corpo social e o corpo simbólico, entrelaçando, portanto, questões paradoxais de vida, sexo e morte.

Esse trabalho tenta apontar como a doença ainda está associada ao sofrimento psíquico e aos afetos desorganizadores ligados à simbolização sobre a morte, despertando no processo de tratamento do paciente inúmeras representações sobre a ameaça de aniquilamento do próprio eu. Nesse sentido, destaca-se como a vivência da angústia de morte é uma característica relevante neste processo de sofrimento psíquico associado à doença.

ANGÚSTIA DE MORTE

Um dos tabus ao qual a AIDS encontra-se associada é ao da morte. Ao ser considerada uma doença letal, produziu um imaginário terrificante evidente "nas atitudes de mascaramento, do silêncio, do esquivamento, da evitação do tema" (LEPRI, P.M.F., 2007). Trata-se, portanto, de um processo defensivo de perda de um ideal à medida que expõe a condição de mortal do ser humano (LEPRI, P.M.F., 2007).

Para Freud, (2006/1915) o inconsciente desconhece tudo o que é negativo, bem como toda negação e, por isso, não conhece sua própria morte, isto é, "no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade".

Em relação à guerra, Freud (2006/1915) explicita que o esquivamento e a evitação da morte são abalados pelo evento, de modo que a morte deixa de ser negada e o sujeito é obrigado a se confrontar com ela. Essa reflexão freudiana permite pensar fazer um paralelo entre a guerra e o diagnóstico da AIDS, uma vez que trata-se de uma doença grave e ainda muito associada à recusa social e à mortalidade do corpo. Dentro dessa perspectiva, o sujeito

depara-se com um diagnóstico terrificante gerando nesse confronto "um quantum de excitação sexual, excessivo ante o despreparo do aparelho psíquico" (CARVALHO, 2012). Daí a presença da dinâmica defensiva da neurose traumática.

De acordo com Laplanche & Pontalis, (2008), o quadro que Freud denomina como neurose traumática pode ser descrito da seguinte forma:o traumatismo toma parte determinante no próprio conteúdo do sintoma (ruminações do acontecimento traumatizante, pesadelo repetitivo, perturbações do sono, etc.); tal fixação no "trauma‟ é acompanhada de uma inibição mais ou menos generalizada da atividade do sujeito. (LAPLANCHE & PONTALIS, 2008)

Nesse circuito neurótico, o medo e a angústia atuam de forma decisiva. Freud (1996) define angústia como um afeto constituído pelo componente somático, ou seja, descargas psicomotoras, sensações de prazer e desprazer. Em alguns momentos, o afeto da angústia é concebido por Freud (1996) como repetição de uma experiência original na qual há a "combinação de sensações desprazíveis, impulsos de descarga e sensações corporais". Não só ao teorizar sobre a neurose traumática, mas também ao se referir às neuroses atuais, associadas geralmente a uma intensa angústia, Freud aponta elementos importantes sobre a dinâmica psíquica do trauma. Após um longo percurso teórico iniciado com o estudo das neuroses atuais em 1985, Freud conceitua a angústia como uma reação específica em situações de perigo, mas também como uma experiência de desamparo do ego diante de um acúmulo de excitação de origem endógena ou exógena. Nesse trabalho considera-se a angústia que é, sobretudo, decorrente de processos somáticos e, como esclarece Ferraz (2007), como "falha do ego diante do perigo, quando este, não tendo tido condições de examinar os processos de realidade, deixa-se tomar de surpresa".

Em se tratando da neurose atual, o termo atual refere-se a uma atualidade no tempo e o fator que promove o seu desencadeamento encontra-se no domínio somático (LAPLANCHE & PONTALIS, 2008). Ferraz (2007) explicita como em Além do princípio do prazer, de 1920, Freud faz uma retomada do ponto de partida para a teorização da neurose atual ao debruçar-se

sobre "uma psicologia do traumático, ou seja, do não-representável." Nesse sentido, ele aponta o retorno ao estado originário, pré-representacional, denominado por Freud como inorgânico, como o elemento que define a pulsão de morte como um "dispositivo antirrepresentacional, que remete diretamente ao corpo biológico primordial" (FERRAZ, 2007). Desse modo, podemos dizer que a pessoa infectada pelo HIV depara-se com uma maciça atualização dos momentos originários da constituição psíquica e com o corpo que Ferraz8 define como o corpo anátomo-fisiológico, que ficou preso ao domínio da necessidade antes que uma operação originária fundasse "o corpo erógeno por sobre o corpo somático" dando representação ao corpo, libertando parcialmente o sujeito do domínio das funções fisiológicas. Todavia, Ferraz (2007) ressalta que "essa subversão será sempre um processo inacabado, sendo possível, sob certas condições, um movimento regressivo".

Afinal, tomar conhecimento de si como portador de uma doença incurável, provoca uma abertura sangrante na representação narcísica da imagem corporal do sujeito, retirando do campo das fantasias a condição imaginária de imortalidade. Essa é uma experiência de desamparo absoluto à medida que as representações de morte associadas a uma doença grave impõem para o sujeito toda sorte de experiências equivalentes ao despedaçamento e à ameaça de fragmentação dos contornos simbólicos do envoltório corporal, colocando um abalo narcísico originário.

Desse modo, a temática da morte desperta na experiência humana os estados de angústia e sofrimento mais traumáticos, tanto para quem vivencia o processo de finitude do próprio corpo, quanto para quem o acompanha, experimentando os mecanismos de luto ao ofertar o cuidado para o doente. É possível pensar que "nenhum ser humano realmente a compreende [a morte], e o nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve, para a ideia da sua própria mortalidade" (FREUD, 2006/1919).

O mecanismo desencadeado pelo adoecimento do corpo parece indicar que mesmo o inconsciente tenta reverter a ameaça de apassivamento psíquico. Nesse sentido, os elementos psíquicos associados com a morte fazem da experiência hospitalar uma vivência em que a ameaça de morte torna-se devastadora impondo o aniquilamento e a apassivação total do sujeito psíquico (SILVA, 2012).

No processo diagnóstico, a ameaça de morte da doença impõe para a libido um pedido inalcançável, isto é, que ela comece a se desligar em vida de seu objeto mais arcaico, o próprio envoltório egóico e seus elementos ligados à imagem corporal. No caso do paciente portador do vírus HIV, assim como de outras afecções igualmente letais, com a perda da fantasia da imortalidade, um grande dispêndio de energia psíquica é realizado, visando tamponar a ferida narcísica aberta.

CONSTRUÇÃO DO CASO CLÍNICO

Todos os elementos de morte associados ao diagnóstico do HIV/AIDS eclodem de forma ainda mais terrificante na clínica desenvolvida dentro de um hospital geral. Esse caso aborda o acompanhamento psicológico realizado com um paciente em um estágio clínico supervisionado de formação psicanalítica, realizado dentro do cenário de um Hospital Público de Urgência e Emergência. Nessa realidade, é essencial considerar a natureza aguda das afecções e sintomas abordados pelos processos de cuidado em um curto período de permanência na instituição. Daí a necessidade de emprego de uma metodologia de atendimento própria para conduta dos casos. Mais precisamente, considera-se o uso da metodologia de construção do caso clínico.
A partir do conceito freudiano de construção (FREUD, 1937) 13, Viganò (1999) propõe como método que a construção seja empregada no contexto institucional para escuta do caso clínico. Nessa perspectiva, o autor amplia a visão freudiana para além do trabalho

analítico de consultório. A formalização desse método é usualmente aplicada no contexto do cuidado institucional em saúde mental e também em pesquisas mais atuais que evidenciam a importância dessa prática nos serviços substitutivos de saúde mental em Minas Gerais (TEIXEIRA, ALKMIN, PINTO, FERREIRA, GONÇALVES, MENDES, REZENDE, 2010). Também em articulação com essas propostas, guardadas algumas diferenças fundamentais, no âmbito do trabalho do psicólogo na rede de saúde, essa ferramenta tem seus desdobramentos em um modelo assistencial próprio, multiprofissional e inserido na produção do cuidado de pacientes em situação de internação hospitalar (SILVA, 2012), bem como na produção de pesquisa associada à prática da escuta clínica no hospital.

A construção do caso permite uma articulação da teoria com a práxis psicanalítica, tendo sempre em vista que "a clínica é ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito" (VIGANO, 1999). Isso para que não sejamos capturados por uma clínica do imaginário, presa a uma produção metapsicológica sem sujeito (TEIXEIRA, ALKMIN, PINTO, FERREIRA, GONÇALVES, MENDES, REZENDE, 2010).

Assim, considerando um modelo assistencial de orientação psicanalítica desenvolvido em um Hospital de Urgência e Emergência, toma-se a construção de caso clínico como parte essencial da formação da escuta e da vivência da prática clínica no hospital, considerando que "a posição de analista na instituição é aquela de construir o caso clínico" (VIGANÓ, 1999) a partir de muitos elementos da escuta, tais como fragmentos da história do indivíduo, do romance familiar, da passagem em outras instituições, dos atendimentos assistenciais com outros profissionais da equipe, das intervenções do Outro, das sessões clínicas de discussão, da construção da escuta no espaço de supervisão clínica (SILVA, 2012). Assim, reúne-se toda sorte de dispositivos capazes de balizar a experiência subjetiva. A partir desse norte metodológico, apresenta-se o caso L.

L., 48 anos, foi diagnosticado em dezembro de 2011 portador do vírus HIV durante internação por dezenove dias em um hospital da rede pública de Belo Horizonte devido a uma pneumocitose, infecção oportunística, a qual é um acometimento frequente em pacientes imunodeprimidos. A admissão nesse hospital ocorreu devido a uma hepatopatia aguda, cuja internação durou 38 dias. Após esse período, L. foi transferido para outro hospital para realização de exames específicos.

O serviço de Psicologia é acionado após vinte e oito dias de internação de L. por via do chamado da Enfermagem devido à sua aparente tristeza. Em discussão do caso com um técnico de enfermagem, foi possível obter também informações referentes à dificuldade para dormir e à ansiedade relatada pelo paciente em função do ócio imposto pela hospitalização. Nas informações consultadas no prontuário, a equipe de Nutrição relatava a perda de peso do paciente bem como a redução da ingestão alimentar.

Durante os quatro atendimentos realizados pela Psicologia – curto tempo de atendimento e característica inerente ao processo de inserção clínica da escuta profissional em um hospital de urgência e emergência – L. mostra-se verborreico, com a produção da fala refletindo a presença dos processos de angústia. Os atendimentos tiveram duração média de uma hora, dada à demanda de escoamento da angústia do paciente e a sua disponibilidade física e psíquica para colocar-se a trabalho pela palavra. Os encontros foram realizados ora na enfermaria, no leito do paciente, ora na sala da Psicologia, de acordo com a disponibilidade física e psíquica de L. para deslocar-se do leito. Todas as sessões foram em seguida discutidas em supervisão clínica com um psicólogo da equipe de psicologia para definição de condutas, intervenções e para construção de uma direção de tratamento. Em especial, a escrita da psicologia no prontuário eletrônico, dentro do modelo assistencial estabelecido, possibilita uma troca maior de informações clínicas sobre o caso com toda a equipe, inclusive da construção técnica de escuta psicopatológica e psicodinâmica, sem a exposição do paciente e sem a quebra do sigilo de atendimento. A exposição do caso que apresentaremos a seguir levanta parte do trabalho de escrita clínica da psicologia e de outras categorias profissionais no prontuário, trazendo novos elementos sobre a construção do caso clínico.

O CASO L.

Desde o primeiro contato, L. faz uso da escuta para escoar o afeto desprazeroso. Diz do seu sofrimento psíquico decorrente de privações ocasionadas pela fragilidade do corpo, tais como a perda da autonomia para ir e vir, da atividade laboral e do contato social em função do embotamento voluntário. L. conta que morava no interior do Estado, mas, desde que fora diagnosticado com HIV positivo, precisou mudar-se para Belo Horizonte em função da debilidade da sua saúde. Com isso, passou a ver com menor frequência figuras familiares, em especial a sua mãe.

A angústia de morte é expressa por L. entrelaçada ao desejo de reviver experiências que remetem à sensação de potência, ilustradas por memórias de quando era criança. O paciente se lembra de momentos da sua infância, vivida no interior do Estado, como quando atravessava um rio com forte correnteza sem sofrer nenhum arranhão e quando fantasiava ser capaz de resolver qualquer situação perigosa que lhe surgisse.

A forma silenciosa e assintomática como a doença se manifesta em algumas fases, parece ter favorecido a intensificação das defesas psíquicas de L. em alguns momentos de sua experiência. Nesse sentido, parecia haver uma retomada da fantasia de imortalidade quando estavam ausentes as infecções oportunistas. Assim, aparentemente, a negação era facilitada pela falta de inscrição de sinais no corpo. Desse modo, de acordo com Lepri (2007) estabelece-se um jogo de não saber sabendo, o qual possibilita ao individuo transitar pela condição de soronegativo e soropositivo.

Em um segundo encontro, L. consegue nomear o que desencadeou sua angústia: o diagnóstico da AIDS. Isso ocorre quando a fragilidade do corpo é exposta como obstáculo que o impede de se esquivar da doença, embora permaneça a impossibilidade psíquica de obter representação possível para a morte. Nota-se um grande dispêndio de energia libidinal no processo de recusa da fragilização do corpo.

Ele afirma estar confuso em função de uma aceleração do pensamento e estar sonhando muito. Na busca por significações para a nova realidade imposta, L. relata a recorrência de sonhos relacionados à impotência e à morte. Além disso, inclui em seu discurso a descrição detalhada a respeito de rituais relacionados à morte, vivenciando o confronto traumático da realidade psíquica com a realidade corpórea.

O que está em evidência, nesse momento, é a articulação entre o trauma e a pulsão de morte. Trata-se de uma "degradação da energia atual, em essência um fator quantitativo que coincide com a força de autoconservação e que passa a funcionar de modo pervertido diante do trauma verdadeiro, irrepresentável" (FERRAZ,2007).

Na descrição dos sonhos, L. relatava primeiro ter sonhado que se encontrava internado em um hospital, havendo três pessoas à sua frente, bem como um computador com três luzes piscando. Essas pessoas diziam-lhe "você vai ter que morrer" (sic) e ele ficava em pânico com essa afirmação. Em seguida, contava o sonho em que estava torrando farinha na roça quando, de repente, o fogo ficava muito alto e ele pedia para abaixarem-no. Mas, por mais que tentassem atender ao seu pedido, mais alto o fogo ficava. Na sequência, dizia ter sonhado que via um primo já falecido como se ele ainda estivesse vivo, mesmo tendo consciência de que essa pessoa já estava morta. Embora sentisse muito medo, ele conversara com esse primo, o qual tinha uma camisa nas mãos e afirmava: "quem vestir a minha camisa, vai ter que morrer também" (sic). Por fim, apontava o sonho em que viu o primo do relato anterior e um tio também já falecido. Nesse episódio onírico, L. discutia e agredia o tio, deixando-o no chão, sem reação, após uma longa luta.

Em se tratando da descrição detalhada a respeito de rituais relacionados à morte, L. explicava com a postura de um grande conhecedor do tema, como é realizado o velório e o enterro de pessoas falecidas.

O material simbólico dos sonhos de L. traz à tona as representações inconscientes recusadas em vigília, indicando a presença de conteúdos de morte e da natureza agressiva de tentativa de representação do afeto. Todos esses componentes apontam os sinais do desamparo do sujeito diante do anúncio da própria finitude e da angústia como um produto desse estado inicial de reedição da condição de desamparo originário (FREUD, 1996/1937).

Nessa concepção encontra-se a condição de hilflosigkeit, na qual está presente o estado de desamparo absoluto, de "desajuda", de "insocorro", com a qualidade de uma excitação pulsional transbordante e na qual o sujeito "é incapaz de ativar mecanismos que convergem para o restabelecimento dos equilíbrios" (FREUD, 1996/1937). Essa condição aponta que contra a angústia provocada pelo anúncio da própria morte, não há mecanismos psíquicos de defesa bem sucedidos, não há aceitação possível.

Além dos sonhos, L. buscava auxílio exterior, demandando orientações da equipe que negassem os fatos escancarados e a dolorosa angústia sofrida. Somava-se a isso, as afirmações de ignorância em relação ao que acontecia em seu corpo, embora quando interrogado sobre a palavra médica, relatasse detalhadamente as comunicações realizadas em relação às afecções diagnosticadas.

Havia também a demanda de L. para que o psicólogo invalidasse a palavra médica, favorecendo o apaziguamento do conflito psíquico. Não raras vezes, L. dizia hostil, que esperava da palavra da psicóloga uma afirmação de que iria ficar bom, tendo como resposta uma escuta continente, afetiva e implicada que buscava apaziguar suas angústias.

DISCUSSÃO

A partir da construção do caso aponta-se os resultados do aprofundamento clínico nas experiências subjetivas de angústia e na produção de sentidos sobre a doença e sobre a morte. Nessa perspectiva, foram evidenciadas as produções oníricas desprazerosas do sujeito na tentativa de reconquista de sua integridade psíquica, repetindo a temática da morte e atestando a dificuldade narcísica de representação da excitação desencadeada pelo confronto com a doença.

Freud afirma que "o luto compele o ego a desistir do objeto, declarando-o morto e oferecendo ao ego o incentivo de continuar a viver." (MOURA & NIKOS, 2000). Todavia, em se tratando da perda de um ideal de vida saudável, nos vemos diante de um paradoxo. É necessário um desinvestimento no objeto perdido para que o ego encontre-se incentivado a continuar a viver. Porém, não havendo representação psíquica para a morte, não é possível que o sujeito faça um desinvestimento em sua própria vida sem que haja um conflito pulsional fragmentador e desestruturante.

Todos os relatos da construção do caso L. indicam que o confronto com o diagnóstico de HIV e com a morte desperta a experiência de que "o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação" (FREUD, 2006/1919).

Consideramos, a partir de Freud, que dentro das experiências humanas de trauma, nada ocupa um lugar tão perturbador quanto à angústia provocada pela ameaça de morte. Assim, é possível conceber que, para a experiência subjetiva, não há aceitação possível para o aniquilamento do próprio corpo e do próprio eu. Daí os dispositivos defensivos de apagamento psíquico das representações do paciente sobre as comunicações diagnósticas e

sobre o conhecimento quanto à doença, tão frequentemente identificados como impeditivos para o tratamento do corpo na relação médico-paciente.

A doença como invariante clínico que afeta o sujeito tem uma significação particular para cada paciente, ainda que alguns aspectos sintomáticos apareçam de forma comum. O modo como cada um irá responder à morte impõe uma dimensão de absoluta singularidade porque "o que nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo" (LAPLANCHE, 1992).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

S CARVALHO, M.T.M. (2012) Sofrimento psíquico, acontecimento traumático e angústia pulsional. Psicol Estud, 17 (Supl. 3): 487-497. FERRAZ, F.C. (2007) A tortuosa trajetória do corpo na psicanálise. Rev. bras. psicanál, 41 (Supl.4): 66-76.
FREUD, S. (1915/2006) Reflexões para o tempo de guerra e de morte. In: Freud S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, V.16. Rio de Janeiro: Imago; p. 285-311.
FREUD, S. (1917/1996) Conferência XXV: A ansiedade. In: Freud S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, V. 16. Rio de Janeiro: Imago, p.393-411.
FREUD, S. (1919/2006) O estranho. In: Freud S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, V. XVII. Rio de Janeiro: Imago, p. 285-311.
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TEIXEIRA, A.M.R., ALKMIN, W., PINTO A, FERREIRA, C.M.R., GONÇALVES, S., MENDES, A.A., REZENDE, R.D. (2010) Metodologia em ato: conversação clínica e construção do caso clínico nos dispositivos CAPS de Minas Gerais. Belo Horizonte: Scriptum.
VIGANÓ, C. (1999) A construção do caso clínico em Saúde Mental. Belo Horizonte: EBP – MG.
AGRADECIMENTO
Agradecemos ao Hospital Risoleta Tolentino Neves por acolher esse método dando espaço para um modelo de atuação da psicologia que funciona articulando de forma indissociável o ensino, a pesquisa e o cuidado assistencial.
CONTRIBUIÇÃO MICHELLE KARINA SILVA
MK Silva trabalhou na pesquisa, metodologia, redação e finalização do texto.
CONTRIBUIÇÃO VANESSA BISCARDI MATOS
VB Matos trabalhou na concepção, pesquisa, redação e finalização do texto.

Recebido em: 21 de maio de 2014
Aceito em: 21 de outubro de 2014

 
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