|
Anorexia mental, novo sintoma – uma patologia da separação
Um dos fundamentos clínicos da concepção psicanalítica da anorexia mental é tomá-la como uma patologia em que a recusa do Outro materno, em particular da mãe excessivamente preocupada com a nutrição da filha, aparece como o cerne de uma estratégia de separação característica do sintoma anoréxico. Na qualidade de resposta sintomática do sujeito, o recurso à anorexia apresenta-se de forma radical como defesa da onipotência materna, um modo de reduzi-la para fazer valer sua existência como sujeito que recorre ao nada como um objeto separador, emancipando sua impotência de desvencilhar-se da dependência alienante do Outro. Para explorar um tal aspecto teórico-clínico, procurou-se tomar um caso terapêutico que se mostra exemplar dessa estratégia no ponto preciso em que a paciente começa a se incomodar com o uso das expressões nós ou a gente presentes, de um modo recorrente, na fala da mãe. Em um dado momento do tratamento, essa indisposição passa a ser subjetivada com o intuito de querer introduzir a diferenciação entre ela e a mãe.
Encaminhada à análise por um psiquiatra com quem se trata desde os 18 anos, padece de um quadro relativamente grave de anorexia. “Tenho 24 anos, sou judia. Meu problema é corpo e dinheiro”1. Veja-se em que circunstância emergem esses primeiros sinais de incômodo da paciente: o pai, um homem obeso, diabético e hipertenso, recusava-se a fazer dietas e tratamentos e teve uma morte precoce aos 42 anos, motivada por um infarto fulminante. Diante desse acontecimento súbito, a situação financeira dos membros da família agrava-se e, consequentemente, passam a viver sob a tutela dos familiares maternos. Após a morte do pai, permanece a imagem de um homem trambiqueiro, pois vivia cheio de dívidas e não se preocupava em pagá-las. Segundo a paciente, é esse o lado falho paterno que forçou a mãe a se tornar totalmente dependente e submissa à família de origem. Esse contexto não é sem consequências para todos; assinala-se, inclusive, o caso de uma irmã que é acometida de uma obesidade mórbida e que se mantém sem tratamento.
________________________
1 Fragmento de um caso de anorexia apresentado pela psicanalista Eliane Costa Dias, durante o 3º Encontro Americano do Campo Freudiano, A variedade da prática do tipo clínico ao caso único em psicanálise, no eixo temático II: Tratamento do tipo clínico como caso único, realizado em Belo Horizonte, em agosto de 2007. Esse relato clínico foi extraído de um caso em tratamento no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Medicina, na Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisa em Psicanálise (CLIPP), em São Paulo.
Como se vê, em sua história, o termo gordura é marcante. Recorda-se de sua avó repetindo às suas primas: ?“Suas gordas! Assim nunca vão arrumar marido”. Desde os 18 anos, começa a emagrecer sob o argumento de se sentir imensa e passa a comer cada vez menos. Perde muito peso, e a mãe a leva ao médico para fazê-la engordar. “Ele falava pra eu ganhar peso e eu perdia mais. Quando cheguei aos 38kg, ele me encaminhou para o psiquiatra”. A partir daí, faz acompanhamento psiquiátrico com uso de antidepressivo e tratamento analítico.
Algum tempo depois, recupera o peso, mas instala-se uma preocupação excessiva com a imagem do corpo, com um controle rígido da comida, atividades físicas e muita preocupação com a possibilidade de engordar. A falta de dinheiro é constante em seu cotidiano. Entra para a faculdade e inicia estágio remunerado. Desde então, assume a administração financeira da casa e o pagamento das despesas. A mãe endivida-se, e isso a leva a deixar a faculdade e, em seguida, a perder o emprego. Isola- se em casa, cuida das tarefas domésticas, faz comida para a mãe e a irmã, cai em depressão e, nesse período, engorda seis quilos. Entra em desespero, não se reconhece, e volta a procurar o psiquiatra. Como não tem condições de pagar por todo o tratamento, é encaminhada a uma clínica social.
A clínica da separação
Desde o começo, estabelece um forte laço transferencial, em que a analista é colocada em uma posição de Outro-todo-saber. No decurso do tratamento analítico, vislumbra-se, logo no início, um movimento de separação entre ela e esse Outro. Incomoda-se com a fala da mãe em que é recorrente o emprego do pronome pessoal nós, ou sua forma coloquial e equivalente a gente, para designar a indiferenciação entre elas. Em outro momento, com muito empenho, consegue bolsa de estudos e volta à faculdade. Em casa, enfrenta a oposição da mãe; pois esta achava que os estudos iriam adoecê-la novamente.
Por diversas vezes, a mãe coloca empecilhos ao seu tratamento, o que a angustia enormemente. Inicia um namoro e, quando conta o fato em casa, a mãe, ao se referir ao namorado, diz: ? “Mas agora que nós conseguimos um namorado, tinha que um ser não judeu?” Diante disto, a paciente responde prontamente: ? “Nós, quem? Quem está namorando sou eu.”
A mãe decide passar alguns dias na praia, exige que a filha vá junto, mas ela se encontra às vésperas das provas finais. Cria-se com isso um impasse entre elas, o que muito a aflige; acaba viajando com a mãe no final de semana, e retornando na segunda- feira para fazer as provas. A mãe nada facilita, deixa dinheiro insuficiente para alimentação, transporte e passagem de volta, o que acarreta a escolha de gastar com o transporte para a escola e a passagem de volta, restringindo-se a comer apenas pão e água nesses dias em que fica sozinha. Ao telefone, a mãe ordena sua volta imediata para a praia.
São notórias as visíveis imposições da mãe sobre a filha. Decide ficar mais dois dias sozinha e, após concluir as provas, vai ao encontro da família. Alguns dias depois, faz um pedido de um horário extra na análise. Chega muito angustiada, com dificuldades para controlar e movimentar suas próprias pernas, mal conseguindo manter-se de pé. Levada ao hospital, dá entrada na UTI com perdas significativas de potássio e cálcio. Lá fica internada por duas semanas e sai com prescrição de reposição dos minerais de que apresenta ainda um quadro deficitário.
Diante das exigências de uma mãe totalmente imbuída da necessidade dos cuidados maternos junto à filha, cria-se a aliança que obtura a possibilidade de um desejo outro fora dessa relação. Portanto, se a essa mãe falta a dimensão do desejo que se satisfaça fora dessa união, a paciente permanece condenada à alienação máxima de realizar a fantasia da mãe. Mantém-se cativa desse circuito dual em que se faz objeto de propriedade, ou ? a saída criada por ela ? constrói uma resposta ancorada no objeto nada, um pãozinho com água nada nutritivo para cavar um efeito separador. Em definitivo, um nada nutritivo para alimentar o desejo.
O caso traz elementos que apontam para o modo com que essa mãe se relaciona com sua própria castração. Sabe-se dos efeitos da castração materna na transmissão da feminilidade. Percebe-se que iniciar o namoro, entrar na faculdade, sair de perto da mãe para fazer provas são interferências que ameaçam romper com a mistura entre mãe e filha. No entanto, ela não tem força suficiente para bancar essa distância, e acaba voltando para o castelo do Outro materno. Assim, na falta de outra saída, nutre-se com o nada até o extremo de ser levada para uma UTI. Arrisca sua vida recusando-se toda satisfação que emana da falta-a-ser para ter um signo de amor do Outro que confunde sistematicamente o estatuto do desejo com o da demanda, ou seja, um Outro que responde à demanda de amor do sujeito com aquilo que tem, ou como bem diz Lacan (1958, p. 634), “empanturra-o com a papinha sufocante”. Dessa forma, ela busca na mãe uma falta, uma cisão, na tentativa de que ela obtenha algo fora dessa relação empanturrante. A proximidade com o objeto nada não é sem angústia para essa mãe que, certamente, não dá maiores sinais de sua condição feminina.
Ela deixa de comer para não ser engolida pela mãe, objetiva operar desesperadamente uma separação a partir desse objeto nada, produz uma anorexia que é uma separação patológica, não dialetizada, unilateral, e que se dirige à exclusão e à recusa do Outro devorador que não conhece outra Lei que não seja a de seu próprio apetite (RECALCATI, 2004, p.78), com a finalidade última de introduzir no real de seu corpo a função da castração, uma vez que não pôde realizá-la simbolicamente. Nota-se que a produção do distúrbio alimentar é um recurso encontrado por ela para realizar o que se considera essencial à constituição do sujeito do desejo, ou seja, a operação de castração 2. Essa operação se define pelo modo como ela incide no corpo libidinal do sujeito de forma a subtrair um excesso sobre o qual não fora capaz de agir.
Paradoxalmente, os sintomas da anorexia dessa paciente apresentam-se, conforme verifica-se no relato, como uma operação para sobrevivência do desejo, e, ao mesmo tempo, para seu desmoronamento. São dois extremos que, muitas vezes, encontram-se presentes em um mesmo caso. Pode-se avaliar, a partir da clínica com esses sujeitos, o quanto é difícil, para eles, no limite de suas possibilidades, assimilar algo da satisfação pulsional no desejo.
Salienta-se que é característica da anorexia uma inversão que não se restringe apenas ao domínio da mãe sobre a filha para fazer valer o domínio da filha em relação aos caprichos da mãe. Se uma tal inversão qualifica o que é o essencial da estratégia anoréxica, é preciso considerar que ela incide também sobre o próprio sujeito, quando este vem ocupar a posição caprichosa do Outro da qual ela se defendia. Em outros termos, o sujeito, no decurso do agir anoréxico, passa a adotar a mesma posição de capricho do Outro com o qual ele próprio se debatia. A nosso ver, deve-se questionar se esse capricho que retorna sobre o sujeito não se exprime no âmbito estrito da oralidade por meio da força imperativa do objeto nada. A anoréxica adota, à revelia de si mesma, o mesmo capricho da mãe; no entanto, ele incide, prevalentemente, sobre as necessidades da nutrição. Existe, aqui, uma oscilação entre essas duas posições, cujo fundo é de natureza especular, que, como dirá Lacan (1956-57, p.190), acontece “sem uma verdadeira saída dialética”. A partir dessa compreensão da relação de inversão, admite-se que a função do desejo da mãe se faz presente no sujeito naquilo que, de modo enigmático, aparece como seu teor mortífero. Logo, é o desejo da mãe que está em questão aqui, e não o desejo pela mãe.
__________________________
2 A vantagem da formulação da operação de Lacan será articular o estatuto da operação castradora ? supressão do órgão ? com o de seu objeto. Recorre-se, nessa concepção, à determinação respectiva de ambos sob as categorias do imaginário, do simbólico e do real: dado que, para Lacan, à frustração imaginária atribui-se um objeto real (frustração feminina do pênis), e à privação real atribui-se um objeto simbólico (objeto subtraído). A castração será considerada como simbólica de um objeto imaginário: entenda-se, nesse último caso, que a castração constitui a representação simbólica de emasculação que incide sobre um objeto imaginário: o falo absoluto da mãe onipotente (LACAN, 1956-57, p. 61).
Toxicomania do nada
Nota-se nas reflexões apresentadas por Lacan, em seu texto de 1938, Os complexos familiares3, que ele vai bem além do paradigma clássico da anorexia histérica, apontando para uma modalidade do sintoma que extrapola o enfoque deste como uma formação substitutiva do inconsciente. No caso relatado acima, o nada deixa transparecer a vertente oposta do objeto que alimenta o desejo como causa. Trata-se, ao contrário, de um objeto que parasita e cristaliza o desejo, sob a forma de um gozo absoluto que não deixa espaço para mais nada. A experiência clínica demonstra, aqui, de modo paradigmático, a anorexia sob a égide, segundo expressão de Lacan, da “toxicomania do nada” (1938, p. 37). Nesses momentos cruciais, em que a ancoragem do simbólico se afrouxa, o sujeito se deixa ir rumo à morte numa clara alusão ao seu desaparecimento, no qual destitui-se a dinâmica do objeto calcada na falta-a-ser. Nessas circunstâncias críticas da anorexia, a vertente da causa do desejo se desfaz em nome do objeto nada que parasita o corpo anoréxico, reduzindo o próprio sujeito a um objeto de gozo, no qual a palavra se desativa. Quando a anoréxica atinge tão baixo limite, com relação à potência criativa do simbólico, em que a subjetividade se reduz ao mínimo, sua corrida em direção à morte nem sempre pode ser evitada. Muitas vezes, é preciso a intervenção de uma ação externa que, por meio de um ato decidido, conduz a paciente à internação, não raro contra a sua vontade, pois, frequentemente, reabrem-se as portas à experiência mortífera da angústia.
______________________
3 Lacan demonstra no seu texto Os complexos familiares na formação do indivíduo sua crença na evolução da libido por fases, em que a preocupação de uma construção cronológica do psiquismo compreende três tipos de complexos distintos: desmame, intrusão e Édipo. Deve-se considerar, entretanto, que a tendência genética de tal formulação não exibe o objetivismo psicológico da maioria das escolas analíticas da época. Ao contrário, ao sustentar a hipótese desses três complexos, ele preferiu adotar o caminho de uma fenomenologia clínica. É essa orientação clínica que justifica o aparecimento da anorexia no pensamento de Lacan, como exemplo do complexo do desmame. Nesse contexto, o distúrbio anoréxico testemunha a resistência do sujeito “às novas exigências, que são as do progresso da personalidade”. Com efeito, a recusa do sujeito em ultrapassar sua ligação com a imago materna torna-se um fator de morte. Essa tendência psíquica para a morte, que se exprime à saída do complexo de desmame, revela-se, mais tarde, nas formas de “suicídios muito especiais que se caracterizam como não-violentos”. Nesse ponto de sua elaboração, Lacan afirma: “[...] a análise desses casos mostra que, no seu abandono à morte, o sujeito busca reencontrar a imagem da mãe”. (LACAN, 1938, p. 41).
Pode-se perguntar, sobre o caso relatado, se há, em um primeiro momento instante, uma tentativa de identificação ao pai quando a analisanda se dispõe a bancar as despesas da casa, o que ele não fazia. Ou, quando fazia, era de forma precária, tanto que ela própria o nomeia de trambiqueiro. Não há como desconhecer, nesse contexto, algo da posição histérica, tendo em vista que o sujeito se identifica exatamente com aquilo que falha no pai e que consiste, no fundo, da queixa do sujeito. Sabe-se que a histérica, muitas vezes, lança mão da castração do pai, identifica-se com esse ponto de falha para mostrar-lhe o que é ser um pai. Inclusive, em certo momento, ela engorda como o pai. Como se vê, isso apenas confirma a queixa inicial da paciente: “meu problema é corpo e dinheiro”. No entanto, a estratégia histérica não se estabiliza como solução para esse sujeito. Algum tempo depois, fica claro que essa vertente da identificação ao pai não se sustenta como defesa para o real da castração. É nesse ponto que surge o novo sintoma que é a anorexia, pois, o recalque e a via identificadora se mostram frágeis e insuficientes, e, portanto, recorre-se à solução anoréxica do ato substitutivo do comer nada. Para o sujeito anoréxico, o desejo de saber atribuído ao Outro se torna gozo do Outro, por isso não resta muito para ele, como aponta Lacan, (1974, grifos nossos) “muito pouco para mim”, e a saída é a ação anoréxica própria do como nada.
Anorexia, saber e desejo de saber
Lacan (1974) confirma, em O Seminário, livro 21: les non-dupes errent, essa mesma hipótese, evidentemente, com outros instrumentos conceituais e clínicos. Afirma, com um tom de certa radicalidade, que o único desejo de saber que a psicanálise reconhece como substancial é aquele atribuído ao Outro. E, segundo ele, o sujeito anoréxico se define por ser aquele que supõe no Outro um desejo de saber. Diferentemente do que acontece com o histérico, reafirma que o como nada nem sempre objetiva, na anorexia, abrir uma falta no Outro. Aquilo que se acentua, nessa definição, é a recusa do Outro como tal, a recusa do saber inconsciente e, portanto, do que causa horror. Recusa que faz o sujeito desaparecer em vez de reencontrar o Outro. Pode-se dizer que a anoréxica se vê exposta ao desejo de saber da mãe que, no fundo, é um desejo de castração. Ao se encontrar com a castração, o sujeito do desejo é conduzido a se ver com a falta no campo do Outro e com a própria divisão subjetiva. A anoréxica evita a todo custo o encontro com a castração. Isto é o que fundamenta a posição de gozo da anoréxica.
O Seminário, livro 11: Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise não contém formulações muito distintas dessas últimas. Com efeito, a anorexia mental aparece como uma suspensão do sujeito diante da falta percebida no Outro, ou seja, o que a anoréxica propõe diante do enigma do desejo do Outro é a sua própria perda e seu desaparecimento. Tudo indica que Lacan, desde muito cedo em sua elaboração, tenha captado esse valor não simbólico, ininterpretável do sintoma anoréxico, em que o objeto causa de gozo se apresenta de modo irredutível à causalidade significante inscrita no Outro. O modo como o considera, no texto de 1938, realça a presença de um “apetite de morte” que a caracteriza de “a greve de fome da anorexia mental” não deixa de antevê o lugar crucial da positividade da atividade de “comer nada” do sujeito que consome seu próprio ser podendo chegar à ruptura radical com o Outro. Cabe assinalar que esse “apetite de morte” não se confunde com um presumível desejo de morte e, sim, com o que se constitui como uma referência constante em seu enfoque da anorexia que é a morte do desejo.
A esse propósito, O Seminário, livro 8: a transferência é bastante esclarecedor, pois toma “a recusa de se deixar alimentar na anorexia”, como um agir que resulta na morte do desejo, ocasionado pelo esmagamento, por parte da mãe, da “demanda de ser alimentado” (LACAN, 1961, p. 202). Nesse curso, Lacan sugere que o sujeito anoréxico não se deixa alimentar para que o desejo, que está para além da demanda, não se extinga. Constata-se, assim, que, no caso referido antes, a paciente não se alimenta para que o seu desejo sobreviva, mas paradoxalmente, ao evitar a morte do desejo, este se torna desejo de morte. É claro que essa morte do desejo acaba por assumir, para a analisanda, outras consequências, visto que se ela se deixa “morrer de fome”, e o faz com o objetivo de desencorajar e desestimular o desejo de saber atribuído ao Outro materno.
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise bate na mesma tecla, ao propor que o sujeito, na anorexia, em resposta ao enigma do desejo do Outro, responde como objeto, a ponto de produzir seu próprio desaparecimento (LACAN, 1964, p. 203). Em outros termos, ele responde com o recurso da separação diante de sua dependência significante ao lugar do Outro, lugar que é experimentado, por ele, em conformidade com a encarnação do desejo de saber. A esse respeito, precisa-se que o desejo de saber constitui um ponto crucial para a clínica diferencial entre a anorexia e a histeria. Insiste- se, assim, no esclarecimento que o ensino de Lacan promove, a saber: a anoréxica supõe no Outro um desejo de saber, não um saber. A anoréxica é de tal maneira preocupada e afligida por saber se ela come, que, para desencorajar esse desejo de saber, ela como nada. Isto implica que, para se separar do desejo de saber, ela não supõe o saber.
Para se entender porque o Outro na anorexia encarna, para o sujeito, o desejo de saber, é necessário abordar o aprofundamento da própria função do sujeito em meados da década de 1960. De fato, em Os quatros conceitos fundamentais, tal função é definida como efeito do significante. Este, produzindo-se no campo do Outro, faz surgir o sujeito de sua significação. Dessa forma, o sujeito torna-se sujeito por ser assujeitado no campo do Outro. Nas palavras de Lacan (1964, p.178), “é por isso que ele precisa sair disso, tirar-se disso, e no tirar-se disso, no fim, ele saberá que o Outro real tem, tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disso”. No caso da anoréxica, instala-se uma estratégia de separação que se explica pela própria função do sujeito definida como efeito significante. Separação expressada pela tentativa do sujeito de se safar disso, isto é, separar-se do desejo de saber que se institui para além do que o Outro possa dizer, para além do que, no Outro, se inscreve como desejo de saber.
Clínica diferencial entre histeria e anorexia
Prevalecem, portanto, nas diversas referências do ensino de Lacan sobre a clínica da anorexia, o ponto fundamental da estratégia de separação no tocante à onipotência da mãe, estratégia formulada nos termos de uma inversão da relação de dependência do sujeito com o Outro materno. O objeto nada é, antes de tudo, um recurso da anoréxica para fazer valer a singularidade de seu desejo.
Nesse aprofundamento da questão do sujeito, essencial para a compreensão do dispositivo de separação do sintoma anoréxico, é preciso ainda levar em conta a dimensão do saber tal qual Lacan (1970, p. 48) a define a partir de sua teoria dos discursos. Vale dizer que o saber é tomado como “meio de gozo”, e, assim, deixa de se confundir com o simbólico ou com a cadeia significante depurada do gozo pulsional. Sob essa perspectiva, o saber inconsciente passa a ser concebido como a forma pela qual o sujeito goza disso, é a maneira pela qual o gozo se aloja na própria cadeia simbólica, na materialidade mesma do significante, ou seja, em sua cifragem, e sem mais qualquer consideração quanto ao sentido. Por consequência, o saber, para a psicanálise, supõe que não apenas ele existe, mas que já está lá, que já há saber no próprio momento de constituição do sujeito. Nesse sentido, assinala-se que o saber tem a sua moradia no Outro.
Porém, como situar o desejo de saber referente a essa concepção do saber como meio de gozo? Para Lacan (1969, p. 21), o desejo de saber não tem qualquer relação com o saber. Mais do que isto, é falso pensar que o desejo de saber seja aquilo que conduz ao saber. Segundo ele, o que conduz o saber é o que o discurso da histérica traz como essencial, que é o gozo que ocupa o lugar da verdade. Para a histérica não é o saber que se localiza no lugar da verdade, é o gozo. Vale dizer que, na histeria, há disjunção entre o saber e a verdade, por isso mesmo ela é depositária de um saber que não se sabe. Um saber que se baseia no significante como tal, porém significante como causa de gozo4. Assim, o Outro é o lugar onde o significante se coloca, ele é a residência do dito. Há saber no Outro, concebido como meio de gozo e, por consequência, um saber a ser tomado.
Assim, pode-se dizer que a concepção clássica do sintoma mantém a estrutura primordial do mecanismo da metáfora, pelo qual se processa a substituição significante própria da ordem simbólica. Nessa concepção usual do sintoma, o saber equivale à cadeia simbólica do significante. Contudo, essa noção do sintoma se mostra insuficiente para apreender o verdadeiro alcance clínico da anorexia, já que, nesta, o sintoma desempenha um outro papel na economia libidinal do sujeito. É como signo da relação problemática do sujeito com a satisfação pulsional que se pode apreender um outro funcionamento do processo de substituição. É exatamente nesse ponto que a questão do saber e a do desejo de saber tornam possível estabelecer a clínica diferencial da anorexia e da histeria.
____________________
4 J.-A. Miller (1998, p. 81), em O osso de uma análise, coloca que o significante é causa do gozo e, portanto, o significante não atrai a libido, mas a produz sob a forma do mais-de-gozar. O significante tem, fundamentalmente, uma incidência de gozo sobre o corpo.
O estatuto do saber implica que, desse modo, já há saber no Outro, e que ele está a prender, a ser tomado. É por isso que ele é feito de aprender. O sujeito resulta de que ele ? esse saber ? deve ser aprendido, e mesmo ser apreciado, posto a preço; quer dizer, é seu custo que o avalia, não como de troca, mas como de uso. O poder que o saber proporciona resta sempre voltado para seu gozo (LACAN, 1973, p. 130).
A pergunta da histérica o que sou eu no desejo do Outro cria a possibilidade de acesso ao desejo do Outro. É exatamente essa pergunta que inexiste na anoréxica, o que faz com que sua relação com o desejo do Outro seja profundamente distinta. Retorna-se, dessa forma, às contundentes assertivas de Lacan (1969, p. 21) de que o desejo de saber não tem qualquer relação com o saber. O que conduz o saber não é o desejo de saber. O que conduz o saber é o discurso da histérica. E continua, “o saber em sua origem se reduz à articulação significante. Tal saber é meio de gozo”. (LACAN, 1970, p.48).
Considerando tais afirmações, pode se dizer que a anoréxica, em sua experiência em direção ao desejo do Outro, ao “prender, tomar” o saber desse Outro, ela acha que frauda, ou seja, não lhe paga o preço. Essa aquisição do saber no Outro que se institui, por meio da experiência, tem um preço, como afirma Lacan (1973, p. 130) em O Seminário, livro 20: Mais ainda: “o saber vale justo quanto ele custa, ele é custoso, ou gustoso, pelo que é preciso, para tê-lo, empenhar a própria pele”. É, nesse sentido, que a tarefa do sujeito na conquista desse saber é tanto adquiri-lo como poder dele gozar. O exemplo que nos propõe Lacan, ainda no início dos anos 1970, para tornar evidente o laço entre saber e verdade, é a complexidade que envolve esse objeto técnico que se designa como computador. Propõe, então, o seguinte questionamento: “que um computador seja dotado do atributo do „pensamento?, ninguém duvida, porém, que, nele, haja „saber? é uma outra coisa” (LACAN, 1973, p. 131). Se, nesse outro aparelho chamado inconsciente, o saber está para além do pensar ? é porque, nele, a fundação de um saber presentifica-se no fato de que o gozo do seu exercício se confunde com o da sua aquisição.
Ao colocar-se diante do aspecto da clínica diferencial, a abordagem psicanalítica da anorexia mental explicita três variantes clínicas que, a nosso ver, devem ser consideradas como um elemento fundamental do tratamento. Em primeiro lugar, considerando a tradição psiquiátrica e, mesmo as elaborações de Freud, a presença de síndromes anoréxicas em quadros histéricos. Sabe-se da rica discussão sobre a categoria clínica de anorexia histérica proposta por Charles Lasègue (1873, p.134), psiquiatra francês que faz com que a anorexia passe a existir como categoria clínica propriamente autônoma. Discussão que também se faz presente no início da obra de Freud. Assim, as intuições e construções clínicas de ambos, a esse propósito, se fizeram com base em expressões sintomáticas concretas da anorexia mental. Há, por outro lado, síndromes anoréxicas que constituem os modos de entrada nas psicoses. E há, ainda, uma anorexia mental que se propõe, no caso clínico apresentado, como um novo sintoma, pois, ela guarda toda a sua especificidade relativamente às estruturas clínicas clássicas, visto que se trata de um sintoma marcado pelo seu valor não metafórico e de uma relação direta com o gozo pulsional.
“Muito pouco para mim”
Confirmando a importância e o alcance desse elemento diferencial, vale retomar a forma como Lacan trata, no final de seu ensino na década de 1970, a distinção clínica entre anorexia e histeria. Mesmo que já anunciado dez anos antes, no Seminário de 1969, o que se mostra inovador e inédito nessa elaboração é inserir tal discussão em relação à posição dos sujeitos anoréxico e histérico quanto ao saber. Ele é taxativo ao dizer que o anoréxico supõe no Outro um desejo de saber. Esclarece, assim, que ele não lhe supõe um saber, mas um desejo de saber. Com o intuito de captar essa função do desejo de saber na anorexia, Lacan recorre às perguntas que as crianças, algumas vezes de forma compulsiva, fazem aos pais. Aliás, não necessariamente os pais acolhem de bom grado aquilo que uma criança, por complacência, sobre essa suposição, endereça ao Outro com uma serie de “por quês?”. Com frequência, a reação da criança diante das respostas dos pais é acompanhada de um “muito pouco para mim”. Para Lacan, este “muito pouco para mim” é o pano de fundo da ação do anoréxico, ação que anuncia, desde o início de seu ensino, sob a forma de como nada.
Ele observa ainda que a anoréxica se apresenta atrapalhada com o excesso de preocupação da mãe em saber se ela come e, justamente, para desencorajar esse desejo de saber, o sujeito come nada. Da mesma forma que a criança se coloca com o seu “muito pouco para mim”, a anoréxica também se defende do lado angustiante do desejo da mãe com o seu nada comestível. Diante disto, o analista, na sua ação, deve estar bastante atento e assegurar-se de não superpor, sobre sua própria pessoa, de modo inadequado, o chamado sujeito-suposto-saber, pois, a anoréxica, no laço transferencial, tende a buscar a suposição de um Outro que deseja saber. É exatamente isso que o psicanalista terá que saber evitar na condução do tratamento desses sujeitos. Em consequência, ele deve separar o desejo de saber da suposição de saber, separação que permite criar um terreno para que a interpretação tenha chances de ter efeitos sobre o sujeito.
Com relação à histeria, o psicanalista encontra-se diante de uma situação bastante diferente, visto que a mãe da histérica, de alguma maneira, ocupa o lugar do discurso universitário, em que, como se sabe, o saber (S2) funciona como o agente dessa modalidade de discurso. Isso significa que o saber, para a mãe da histérica, é um meio de ter e, em uma certa hierarquia, o saber, para ela, se aloja em um bom lugar, o que acarreta consequências favoráveis para o sujeito histérico na relação com o saber. O saber se encarna na forma de uma pergunta sobre a feminilidade. Ao contrário da anorexia, o saber é visado e não é fonte de angústia.
Assim, sem que ela mesma saiba, a mãe da histérica não se encontra presa a qualquer desejo de saber. Exatamente por isso ela “passa” [refile], transmite à criança, diz Lacan, o saber como meio de potência e é esse fator de transmissão que promove, na menina, a histeria. Segundo Lacan (1974, inédito), o desejo de saber da histérica não é vivido como angustiante, pois não é produzido pela mãe na relação do sujeito com o saber, mas como tendo sido “passado por debaixo do pano” [passer en fraude] à criança. Pode-se, dessa forma, admitir que a transmissão de desejo de saber, na histeria, acontece de maneira secundária, ou seja, advém por acréscimo à própria constituição do desejo.
Nessa referência fundamental de Lacan, nota-se que a anorexia encontra-se relacionada ao desejo de saber, porém, concomitantemente, ele próprio afirma que não há desejo de saber, mas horror ao saber. E é para amenizar esse horror de saber sobre o gozo que a anoréxica come o nada, encarna-o em seu corpo a ponto de sua desaparição. Esse nada fixa-se e parasita o sujeito, deixando-o inerte e, por consequência, vedando uma abertura possível do inconsciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LACAN, J. (1938/2003). “Os complexos familiares na formação do indivíduo”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 29-90.
LACAN, J. (1958/1998). “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 591-652.
LACAN, J. (1956-57/1995). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1960-61/1992). O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1964/1986). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1969-1970/1998). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1972-1973/1982). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1974). O Seminário, livro 21: les non-dupes errent. Inédito. Lição de 9 de abril de 1974.
LASÈGUE, C. (1873/1971). Ecrits psychiatriques. Toulouse: Edouard Privat, Editeur, 1971.
MILLER, J.-A. (1998). O osso de uma análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
RECALCATI, M. (2004). La última cena: anorexia y bulimia. Buenos Aires: Editora del Cifrado.
Recebido em Julho de 2014
Aceito em Julho de 2014 |
|