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De volta para casa: observações sobre a política pública e o analista na
desinstitucionalização1
Este artigo parte da inauguração da ciência moderna, momento em que o sujeito
do inconsciente adveio e foi por ela foracluído. Em seguida, situa-se a psicanálise, que
se tornou possível neste momento de inauguração da ciência, mas opera de forma
diferente desta, a partir do sujeito do inconsciente. Contrastam-se, então, estas práticas
com a política por meio de programa caro a desinstitucionalização, que pretende incluir
aqueles excluídos por anos nos asilos psiquiátricos. Ao pretender incluí-lo tampouco a
política opera com o sujeito do inconsciente. Assim, defende-se a tese de que a política
deve conter em seu interior a clínica, dispositivo que abre uma brecha ao sujeito, ideia
que aproxima a inserção social da inserção simbólica no campo do Outro.
No escrito "A Ciência e a Verdade" (LACAN, 1966/1998) Lacan trabalha
algumas implicações interessantes do sujeito. A argumentação do autor situa o sujeito
como parte essencial do processo do qual surgiu a ciência moderna. Para ele, no mesmo
momento em que a ciência foi inaugurada, a partir do cogito cartesiano, o sujeito
adveio.
Assim, além de ser sujeito do inconsciente, retomando uma máxima lacaniana, "o sujeito sobre quem operamos em psicanálise não pode ser outro senão o sujeito da
ciência" (LACAN, 1966/1998, p.837), este é o mesmo sujeito da ciência moderna. Para
explicar, Lacan (1966/ 1998) afirma que a descoberta freudiana, o inconsciente, seria
impossível antes do advento desta ciência. Neste sentido, Elia (2000) formula que a
psicanálise mantém relação de derivação com a ciência, sendo o corte que instituiu a
ciência moderna a condição de surgimento da psicanálise.
O correlato do advento da ciência, o cogito cartesiano, foi operado por Galileu
desde o surgimento da física moderna. No momento do cogito o filósofo voltou o
discurso do saber para o agente, tomando a si próprio como questão de saber. Além
disso, duvidou de todas as evidências garantidas pela dupla percepção / consciência,
entre elas, obviamente, o espaço. Logo Descartes trouxe o sujeito ao partir do método
da dúvida hiperbólica, perguntando-se incessantemente qual certeza se pode ter e concluindo pela única: 'penso, logo sou'.
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1 Este artigo é fruto da dissertação de mestrado da autora defendida em 2010 no Programa de Pós-
Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com o título O Lugar do Sujeito
nos Serviços Residenciais Terapêuticos, com a orientação do professor Luciano Elia.
No entanto, Lacan (1966/ 1998) reforça que a ciência, apesar de ter introduzido
o sujeito na cena, o excluiu de sua experiência, não operando com este. Esta continuou
buscando o saber, a certeza e não a verdade presente no ser apresentado pelo cogito
cartesiano. Pode-se dizer, então, que a ciência moderna trouxe o sujeito para a rua,
espaço público, lugar de ir e vir. Mas, em um mesmo golpe, a ciência o abandonou, não
o considerando, deixando-o na rua.
"Assim, àquilo que se produziu como fundação da ciência no sentido
moderno do termo, a física moderna, empírica e matematizada
(Galileu), corresponde uma elaboração filosófica que consiste em
retirar as consequências desse ato por relação à subjetividade
(Descartes). Essa 'dobradinha' tem uma causa maior: se a ciência
moderna abole, com seu gesto de violência conceitual desferida contra
as evidências imediatas e perceptuais, a certeza que até então o
homem podia ter quanto à consistência dessas evidências, o sujeito,
assim abalado, sai de sua toca, desprende-se do fundo indiferenciado
em que, crédulo, se mantinha, para desenhar seu contorno angustiado
de dúvidas, perguntando-se 'de que então posso estar certo?'
Exaurindo ao máximo todos os planos duvidosos, e radicalizando
assim a função mesma da dúvida nascida desse abalo e elevadaà condição metódica, Descartes responde: 'Só posso estar certo de que
penso, pois mesmo que disso duvide, ainda assim continuarei
pensando" (ELIA, 2000, p.21).
A psicanálise torna-se possível somente após este momento inicial da ciência
moderna por, ao contrário da própria ciência, operar com o sujeito. E, ao operar com
ele, a psicanálise o reabilita na cena discursiva em que a ciência o situou – mas o
excluiu – dando lugar, ou casa, ao sujeito.
Em consonância, Lacan (1964 /1985), no Seminário, livro 11, defende que
Descartes deu o primeiro passo ao delimitar o sujeito como distinto das funções
psíquicas, percepção, consciência etc. Ele considera fundamental que o 'eu penso' tenha
sido sustentado por Descartes alinhado com uma enunciação da dúvida, 'eu duvido',
mesmo que ele ainda carregasse em seu enunciado muito da vontade de saber.
Já a Freud, Lacan (1964/ 1985) credita um passo além, por ter situado a certeza,
o saber, na associação dos significantes, valorizando a cadeia e a divisão do sujeito da
certeza. Com isto, considera que Freud situou o sujeito no inconsciente, defendendo que
ele deva ser reencontrado onde estava o Isso ou, na leitura de Lacan, advindo no lugar
onde era real.
Nesta via, Lacan (1964/ 1985) define o Isso como o tecido das mensagens, lugar
da rede dos significantes, lugar dos sonhos e também lugar do sujeito, onde pode ser
construída a sua casa. Para ele, "Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que é novo – aqui, no campo do sonho, estás em casa. Wo es war, soll Ich werden" (LACAN, 1964/ 1985, p.47). Ou seja, lá onde estava o Isso, o sujeito deve advir. Em
suas palavras:
"Aí está o lugar em que se joga a questão do sujeito do inconsciente. E
não é, diz Freud, um lugar especial, anatômico, se não, como concebêlo
tal como nos é apresentado? – imenso desdobramento, espectro
especial, situado entre percepção e consciência, como se diz entre
couro e carne. Vocês sabem que esses dois elementos formarão mais
tarde, quando se tratar de estabelecer a segunda tópica, o sistema
percepção-consciência. Wahrnehmung-Bewusstsein, mas não se deve
esquecer então o intervalo que os separa, no qual está o lugar do
Outro, onde o sujeito se constitui" (LACAN, 1964/ 1985, p.48).
Nesta passagem, Lacan (1964/ 1985) indica o lugar do sujeito no Outro, onde
pode ser construída uma casa para ele, como um intervalo. No caso em questão se trata
de intervalo não muito óbvio, entre couro e carne, metáfora utilizada pelo autor
referindo-se à percepção e à consciência. Desta forma, o lugar do sujeito está entre a
percepção e a consciência, não sendo um espaço especial. Mesmo assim é algo que
perturba este sistema. Lacan afirma que neste lugar descoberto por Freud, só pode
'retornar' o sujeito, "que está aí esperando desde Descartes" (LACAN, 1964/ 1985,
p.49).
Sobre este verbo 'retornar', no artigo "O Estranho", Freud (1919 /1996)
menciona que a sensação de estranheza, ou o unheimlich, poderia ser causado pelo
retorno de um elemento recalcado. Tal consideração é para ele uma das justificativas do
uso linguístico que estende a mesma categoria ao seu oposto – unheimlich a heimlich ou
vice-versa – já que o estranho não seria exatamente novo, mas profundamente familiar e
alienado pelo recalque.
No entanto, a partir das considerações de Lacan (1964/ 1985), pode-se rever esta
ideia freudiana sobre a função do retorno como mantenedor do recalcado, situando-o de
outra forma, como retorno de algo essencial. Para ele, "a constituição mesma do campo
do inconsciente se garante pelo Wiederkehr" (LACAN, 1964/ 1985, p.49), ou seja, pelo
retorno, conforme traduzido pelo próprio autor. Nas palavras de Lacan:
"É desse passo que depende que se pudesse chamar o sujeito de volta
para casa, no inconsciente – pois de qualquer modo, importa mesmo
saber quem a gente chama. Isso não é a alma de sempre, nem mortal,
nem imortal, nem sombra, nem duplo, nem fantasma, nem mesmo
psicosfera em pretensa carapaça, lugar das defesas e outros
esquematismos. É o sujeito que é chamado, não há outro, portanto,
senão ele, que possa ser escolhido. Há talvez, como na parábola,
muitos chamados e poucos escolhidos, mas não haverá certamente
outros além dos que são chamados" (LACAN, 1964/ 1985, p.49-50).
Assim, pode-se dizer a partir de Lacan, que é o passo dado por Freud – ao operar
com o sujeito abandonado na rua pela ciência e por Descartes – o que abre um lugar
possível ao sujeito, inclusive para que se possa chamá-lo de volta para casa.
Em outra cena, na vertente da Reforma Psiquiátrica Brasileira, no movimento da
desinstitucionalização, o Ministério da Saúde lançou em 2003 um programa de nome
De Volta para Casa, cujo objetivo é viabilizar "a inserção social de pessoas acometidas
de transtornos mentais" (MS, 2003, p.1). Este programa visa alcançar especialmente
pacientes isolados por muito tempo pelas internações longas nos grandes hospitais
psiquiátricos e que dependem de apoio especial para que possam ter alta e morar em
outro local, tais como os Serviços Residenciais Terapêuticos2.
A ação principal do De Volta para Casa é regulamentar o auxílio-reabilitação
psicossocial, um benefício oferecido a egressos de internações psiquiátricas que
duraram período igual ou superior a dois anos. Entende-se que este auxílio seja
importante para a concretização do projeto de retorno domiciliar do paciente, podendo
este incluir-se em uma Residência Terapêutica, na casa dos familiares ou em formas
alternativas de residências. Além disso, é obrigatório que o paciente esteja em
tratamento na rede extra-hospitalar.
Assim, este programa federal importantíssimo é parte de um cardápio de ações
políticas que objetivam reformar a assistência em psiquiatria, organizando uma rede de
recursos assistenciais necessários. É caro ao programa garantir ao egresso da internação
de longa permanência todos os direitos civis, políticos e de cidadania. Portanto, o De
Volta para Casa visa à inclusão social do assistido, sua alta do hospital e um 'retorno a casa', ideia que remete ao morar na própria casa, talvez aquela onde se nasceu e pelo
programa se irá retornar.
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2Os Serviços Residenciais Terapêuticos foram regulamentados como dispositivos formais da rede pública
de atenção psicossocial no início de 2000, pelo Ministério da Saúde, por meio da Portaria GM nº 106.
Esta portaria define estes serviços com esta denominação como casas inseridas principalmente na
comunidade, chamadas Residências Terapêuticas, com objetivo de receber egressos de internações
psiquiátricas de longa permanência sem suporte social ou laços familiares viáveis.
Neste sentido, este programa é exemplo que coloca uma questão, se uma ação
assistencial, de cunho político, seria suficiente para que um cidadão experimente o
espaço de forma familiar, doméstica, retorne para casa. A cartilha do programa é aberta
com a seguinte inscrição: "a reintegração social é o melhor tratamento" (MS, 2003, p.1),
sugerindo que a inclusão na sociedade depende, em alguma instância, da clínica.
Nesta ação, a política credita-se o poder de saber sobre o cidadão, acreditando
poder incluí-lo em algum lugar a partir da garantia de seus direitos civis e de cidadania.
Portanto, tal como a ciência moderna a política não opera com o sujeito do inconsciente,
podendo pecar por deixar o sujeito esquecido na rua, sem lugar, sem casa.
É importante mencionar que a ciência moderna foracluiu o sujeito, sendo esta
operação condição de possibilidade para que a ciência mesmo funcionasse. Já a ciência
contemporânea, imiscuída no plano de uma medicina comportamental – cada vez mais
presente nas formas de pensamento atuais – está preocupada apenas com a busca do
saber a partir de evidências. A propósito, Lacan (1976-77) refere-se à inutilidade do
saber da consciência, no que se refere a busca da verdade, sugerindo ser a consciência o
que busca evidências. Para o autor, é preciso esvaziar as evidências para se ter qualquer
possibilidade de acesso à verdade.
Assim, a política e a ciência inaugurada pelo ato cartesiano apenas apontam na
direção do sujeito, não operando com este, apesar de terem – especialmente a política
pública na área da saúde mental – a pretensão de garantir a alguém um lugar. De
qualquer forma, considerando a cena aberta pela política importante, vale questionar
que efeitos os Serviços Residenciais Terapêuticos podem ter na estrutura do sujeito,
caso este seja considerado.
Freud, ao tratar do inconsciente, deu casa ao sujeito e Lacan (1964/ 1985), no
Seminário 11, fala de um possível retorno do sujeito para casa, no inconsciente. Este
retorno que, de fato, considera um lugar para o excluído, depende essencialmente de
uma construção dele próprio, que pode ser secretariada pela clínica e potencializada
pela política – por exemplo, com a garantia de benefício que sustente o cidadão em uma
casa. A política precisa conter a clínica em seu interior, já que não é capaz de sozinha
voltar o sujeito para casa.
Lacan (1964/ 1985) – lembrando o termo freudiano Wiederkehr – fala de um
retorno para casa cuja função garante a constituição do inconsciente. Desta forma, não
se trata de retornar a residência onde já se morou, nem do retorno do recalcado de que
fala Freud (1919 / 1996) no artigo "O Estranho" e tampouco de uma reminiscência no
sentido daquilo que se conserva na memória. Lacan (1964/ 1985) situa em outro âmbito
a rememoração, como uma reminiscência originária da estrutura do significante, ou seja,
do Outro.
A reminiscência assim pensada por Lacan (1964/ 1985) parece se aproximar
mais do método de conhecimento platônico que considera a rememoração como a
lembrança de uma verdade – no caso seria da verdade do sujeito e não de um saber – que, para Platão, foi contemplada antes da encarnação. De acordo com Lacan (1964/1985), o que retorna, que é rememorado, é algo da estrutura do Outro, de elementos que
provém do significante.
Pode-se considerar o corpo como o locus primordial por onde o significante se
encarna causando o sujeito. É o retorno destes elementos, que se tornam essenciais no
momento da encarnação, da entrada do significante no real, e não antes dela como
quereria Platão, que pode abrir um lugar ao sujeito, garantindo o inconsciente. "O
sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia, tudo isso só marcha até um certo
limite, que se chama o real" (LACAN, 1964/ 1985, p. 51). Ou seja, no âmbito do
pensamento, da consciência, o sujeito não retorna ao real para neste registro construir
um lugar para si, articulado ao simbólico.
No escrito "Observações sobre o relatório de Daniel Lagache", a fim de defender o sujeito em sua estrutura, Lacan (1960/ 1998) aponta a importância de três formulações
que devem ser mantidas juntas, apesar de paradoxais. Na primeira, ele define que o Isso,
mesmo em seu caráter inorganizado, contém a estrutura, o que se apresenta como um
paradoxo: o aspecto de não organização do Isso coexiste com toda a estrutura da
compulsão de repetição (Wiederholungszwang) que Freud situa nele.
A segunda ideia se refere ao fato de não haver exclusão lógica ou contradição no
Isso e nas pulsões que o habitam. Lacan define esta noção indicando não haver negação
nestes. Por último, Lacan trata "do silêncio que as pulsões de morte fariam imperar no
Isso" (1960/ 1998, p.664), podendo este, então, ser comparado a um fóssil habitado por
restos herdados, onde a pulsão de morte imprimiria uma cavidade.
Neste escrito, Lacan (1960/ 1998) retoma a fórmula freudiana do Isso como
reservatório das pulsões, concebidas aqui não como um caldeirão caótico mas como
conjunto de mensagens provindas do Outro indeterminado e ao mesmo tempo
endereçadas a ele. Para isso, faz uso da interessante imagem da bocca di leone, espécie
de caixa de correio com abertura em forma de boca de leão em que todas as queixas,
denúncias, súplicas da população anônima e com destinatário incerto ou indefinido se
acumulavam em Veneza, em um amontoado que permanecia ali guardado, adormecido
porém iminentemente explosivo em sua potência cumulativa.
Trata-se, para ele, de um reservatório ou de uma reserva em silêncio, já que "o
que nele se produz de prece ou de denúncia remetidas lhe vem de fora e, se ele as
acumula em si, é para dormir sobre elas" (LACAN, 1960/ 1998, p.666), o que cria certa
ausência. Para Lacan, a pulsão não é toda significante, mesmo sendo toda estruturada.
Anteriormente ao nascimento de qualquer um, sua existência já é sustentada por
aquilo mesmo que estrutura o Isso, a articulação significante. "Um pólo de atributos, eis
o que é o sujeito antes de seu nascimento (e talvez seja sob o acúmulo destes que irá claramente sufocar). De atributos, isto é, de significantes" (LACAN, 1960/ 1998,
p.659), diz Lacan. Estes três ditos lacanianos são efeitos do significante e de sua
articulação.
Ao definir estrutura a partir da cadeia significante, e não por uma forma
geométrica qualquer, Lacan situa a experiência do sujeito no campo em que isso fala
dele. É um modo de estrutura produzido pelos "efeitos que a combinatória pura e
simples do significante determina na realidade em que produz" (LACAN, 1960/ 1998,
p.665) e que podem retornar, podem dar lugar ao sujeito.
"Quando a linguagem se intromete na história, as pulsões têm maisé que proliferar, e a pergunta (se houvesse alguém para formulá-la)
seria, antes, saber como o sujeito há de encontrar nela um lugar
qualquer. Felizmente, a resposta vem, antes de mais nada, no furo que
ele cava para si na linguagem" (LACAN, 1960/1998, p.668).
Desta forma, a psicanálise reconhece haver um lugar para o excluído, que não é a inclusão, pois "afirma o sujeito sob o aspecto do negativo, instalando o vazio em que
ele encontra seu lugar" (LACAN, 1960/ 1998, p.672), chamado por Lacan de furo
cavado, intervalo entre couro e carne, ausência, corte. Ao mesmo tempo, Lacan chama
este lugar de "lugar de Mais-Ninguém" (LACAN, 1960/ 1998, p.674), indicando o nada anterior à criação de um lugar e a contingência ligada a esta criação.
Para Lacan (1960/ 1998), enquanto reservatório das pulsões, há espaço no Isso
para uma falha produzida pelo sujeito em que as outras instâncias, eu e supereu, acabam
se acomodando. Este vazio criado foi chamado por ele de pulsão de morte. Portanto, ele
sugere que este lugar, na verdade preparado para o sujeito, "sem que ele o ocupe e o Eu
que ali vem se alojar" (LACAN, 1960/ 1998, p.674), se torna um acampamento para o
eu e o supereu. Em suas palavras:
"Essa ausência do sujeito, que no Isso não organizado produz-se em
algum lugar, é a defesa a que podemos chamar natural, por mais
marcado pelo artifício que seja esse círculo queimado na mata das
pulsões, por ela oferecer às outras instâncias o lugar em que acampar
para organizar os seus. Esse lugar é justamente aquele a que toda coisa é chamada para ser lavada da falha, que ele possibilita por ser o lugar
de uma ausência: é que toda coisa pode não existir" (LACAN, 1960/1998, p.673).
Neste escrito, Lacan (1960/ 1998) reitera o desconhecimento em que se situa o
eu por acreditar-se 'senhor em sua própria casa', parafraseando Freud (1917/ 1996).
Além disso, Lacan (1960/ 1998) identifica haver uma função em tal desconhecimento,
sendo o eu resistente a sabê-lo. Neste sentido, considera o desconhecimento uma defesa,
mencionada na passagem acima como uma defesa à ausência em que se encontra o
sujeito.
É, ao mesmo tempo, esta ausência do sujeito e a defesa do eu contra ela o que
possibilita às outras instâncias armar acampamento no "círculo queimado na mata das
pulsões" (LACAN, 1960/ 1998, p.673), construindo casa no Outro. Este lugar é aberto
pelo sujeito, no furo que cava para si, mas mobiliado pelo eu, diz Lacan: "a função do
Eu impõe ao mundo em suas projeções imaginárias e os efeitos de defesa que elas
retiram de mobiliar o lugar onde se produz o juízo" (LACAN, 1960/ 1998, p.677). E ele
se pergunta, então, como o sujeito poderia retornar para casa ou encontrá-la, constituíla.
"Mas, esse lugar do sujeito original, como haveria este de encontrá-lo
na elisão que o constitui como ausência? Como reconheceria ele esse
vazio como a Coisa mais próxima, mesmo escavando-o de novo no
seio do Outro, por nele fazer ressoar seu grito? Antes, ele se
comprazerá em encontrar ali as marcas de resposta que tiveram o
poder de fazer de seu grito um apelo. Assim ficam circunscritas na
realidade, pelo traço do significante, as marcas onde se inscreve a onipotência da resposta. Não é a toa que essas realidades são
chamadas de insígnias" (LACAN, 1960/ 1998, p. 686).
Para responder, Lacan (1960/ 1998) sugere justamente certo retorno de
elementos da estrutura significante, referindo-se aos que marcaram a transformação da
necessidade em demanda. Estes seriam encontrados com alívio pelo sujeito ao encontrar
seu lugar no Outro. Lacan (1960/ 1998) passa, então, a falar da análise como um
caminho na via deste retorno, possibilitando a construção de uma casa para o sujeito. Neste caso, o analista toma de empréstimo o lugar do Outro, ao tornar-se lugar da fala
do sujeito.
Desta forma, o retorno de elementos da estrutura significante, mesmo sendo um
retorno para um lugar nunca habitado, poderia constituir, pela primeira vez, um lugar no
Outro, que poderia ser chamado de casa. O trabalho clínico na desinstitucionalização
pode ser um disparador deste retorno por tratar-se do acompanhamento às questões de
moradia, por muitas vezes incluir em sua prática uma casa concreta, por questionar o
que cada um precisa para sentir-se em casa, sentir um lugar como familiar. Pode
aparecer, então, o lugar que o sujeito (não) teria no Outro, passando, por efeito de uma
suplência a ter, ou seja, a casa pode exercer de forma metafórica esta função.
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Referências Bibliográficas
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Psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, pp. 19-35.
FREUD, S. (1917/ 1996). "Fixação em Traumas – O Inconsciente". In: Volume XVI, Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, pp.281-292.
FREUD, S. (1919/ 1996). "O Estranho". In: Volume XVII, Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, pp.235-273.
LACAN, J. (1960/ 1998). "Observações sobre o relatório de Daniel Lagache". In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, pp.653-691.
LACAN, J. (1964/ 1985). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. (1966/ 1998). "A Ciência e a Verdade". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,pp. 869-
892).
LACAN, J. (1976-1977). Le Séminaire, livre 24: L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre. inédito,
documento de trabalho não comercializado da Association Lacanienne Internationale. Paris. MS. (2003).
Programa De Volta para Casa – liberdade e cidadania para quem precisa de cuidados em saúde mental.
Cartilha.
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