|
Singularidade subjetiva e metodologia clínica
A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na
outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do
que em primeiro se pensou.
(Guimarães Rosa: Grande Sertão: Veredas)
Ao desenvolver, durante 4 anos, uma pesquisa orientada pela abordagem psicanalítica
no campo da saúde mental, deparamo-nos com uma dificuldade talvez conhecida da maior
parte dos pesquisadores que trabalham nessa linha, relativa ao problema da metodologia a ser
aplicada¹. A psicanálise não dispõe, para abordar a singularidade subjetiva, de um dispositivo
metodológico preparado de antemão, como um conjunto de regras previamente codificadas
acerca do seu procedimento clínico. Por isso sustentamos, ao fim dessa pesquisa, que o
método psicanalítico somente poderia ser concebido nos termos de uma metodologia em ato,
enfatizando que se dispomos de um caminho, como a etimologia do termo método indica, esse
se configura no momento mesmo em que o percorremos. No lugar de nos valer de uma
cartografia estática, aonde todos os traçados e relevos já se encontrariam de saída prédefinidos,
como é o caso dos guide-lines dos tratados de medicina e de sua prima pobre, a
psiquiatria baseada em evidências, julgamos mais prudentes adotar, seguindo a sugestão de
Jean-Claude Milner, o ponto de vista do córrego que faz existir a paisagem à medida em que a
percorre (Milner, 1995, p. 11).
1 Trata-se do projeto de Pesquisa "Investigação dos efeitos discursivos da capsização da atenção em saúde
mental, cujos resultados foram publicados no livro "Metodologia em Ato", Belo Horizonte, Scriptum, 2010.
Vale ainda evocar, a esse propósito, o efeito de uma bricolagem que a experiência
psicanalítica produz, no sentido comentado por Lévi-Strauss, em La Pensée Sauvage, de uma
defasagem entre o projeto inicial e aquilo que se alcança ao termo do caminho percorrido
(Lévi-Strauss, 1962, 29-30). Ao escolhermos o excerto de Guimarães Rosa, acima citado, para
servir de epígrafe ao livro "Metodologia em Ato", visávamos considerar a deformação que o
percurso provoca na própria intenção que preside ao caminhar, coisa que, aliás, facilmente
constato ao comparar a ementa de meus cursos com os resultados alcançados no seu termo.
O que estava para nós em questão, ao adotar o termo de Metodologia em Ato, era
justamente a impossibilidade de se determinar, a partir da intervenção psicanalítica, o
caminho para chegar a um resultado previsto, um trajeto que regulasse de antemão uma
seqüência de operações a se executar. Por mais que nos esforçássemos, não haviam meios de
se oferecer, no relatório final entregue ao CNPq, um conjunto tipificável de intervenções com
resultados previsíveis se aplicado em determinada situação, conforme se espera de toda
proposta metodológica. E, no entanto, permanecia para nós a convicção de que não se tratava
de um percurso puramente errante, que um caminho estava sendo verdadeiramente traçado no
ato desse caminhar, ainda que não soubéssemos sequer ao certo o significado de nossa
expressão.
O que gera um grave problema, quando devemos prestar contas do que fazemos na
universidade. Pois normalmente se supõe de quem expõe um trabalho, no ambiente
universitário, seja ele psicanalista, behaviorista ou cognitivista, que ele saiba ao menos do que
está falando. Trata-se, a bem da verdade, de uma suposição contrária à condição que permite a
experiência psicanalítica, somente possível porque o sujeito que nela se insere não sabe do
que está falando, e por isso pode ser surpreendido pelo efeito de verdade de algo que ele
próprio enuncia. Para a psicanálise, o movimento do dizer se coloca como uma dimensão
inseparável do efeito de verdade alcançado. Por isso afirmamos, a propósito do programa
lacaniano de um retorno a Freud, que este responde mais à necessidade de um retorno ao dizer
de Freud do que a uma simples releitura de seus enunciados.
A indicação, portanto, de uma metodologia em ato, como baliza teórica de nosso
programa, responde justamente a essa dimensão em ato do saber que não se sabe sem o
movimento em que se realiza. Para voltarmos, então, ao caminho que nos levou à sua
formulação, cumpre indicar que estávamos às voltas, em nossa pesquisa, com uma abordagem
do funcionamento dos serviços substitutivos mediante a aplicação do dispositivo de
conversação clínica. Do ponto de vista de sua localização histórica, poderíamos resumir
dizendo que o contexto sobre o qual intervimos resultou da introdução, a partir dos anos 90,
dos dispositivos CAPS enquanto forma substitutiva de resposta ao hospital psiquiátrico, o
qual suscitou um número considerável de questões cujo conjunto é impossível de expor
detalhadamente nesse escrito. Interessa-me, todavia, discutir os motivos que geraram a
convocação da psicanálise como princípio de orientação tanto clínica quanto política na
condução desse processo, ainda que, em muitos casos, os procedimentos efetivamente
adotados pelos serviços CAPS se colocassem em direção distinta ou mesmo contrária à
orientação psicanalítica. Se me proponho a isso, é por acreditar que a psicanálise de certo
modo se apresenta como resposta a um impasse metodológico gerado pela passagem do
tratamento hospitalar para o serviço aberto.
Nossa hipótese, para irmos ao ponto, é que a psicanálise ali se viu convocada na exata
medida em que, com a substituição do enfoque hospitalar do tratamento psiquiátrico pela
predominância do seu cuidado em serviços abertos, passamos de algo que se poderia chamar
de uma experimentação controlada da abordagem do padecimento mental, cuja metodologia
poderia seguir parâmetros codificados, a uma experiência do atendimento cuja orientação
somente pode ser concebida no momento mesmo em que essa experiência se apresenta.
Tratase
de uma conjectura que merece exame, se considerarmos que o surgimento do pensamento
científico moderno, do qual o saber psiquiátrico seria, de certo modo, um dos herdeiros
contemporâneos, somente foi possível a partir da constituição de campos de experimentação
controlada dos fenômenos sobre os quais ele se aplica. Distintamente da ciência antiga,
constituída a partir de formulações imprecisas retiradas da observação espontânea dos
fenômenos naturais, o saber científico moderno instaurou o laboratório como lugar propícioà observação controlada dos fenômenos a serem estudados mediante métodos de
experimentação realizado em condições artificiais. Do campo da experimentação científico
são eliminadas as variáveis que não interessam ao estudo, conforme se ilustra na clássica
idéia, familiar a todos que já abriram um manual de física, da experiência realizada em
condições ideais de temperatura e pressão (CITP).
Vale a pena ler, a esse propósito, o curiosíssimo artigo de A. Koyré, intitulado "Do
mundo do mais ou menos ao universo da precisão", para entender a importância do controle
das variáveis na constituição da moderna experimentação científica. Nota-se, por exemplo,
que se a alquimia jamais obteve uma experiência precisa, não foi por falta de meios; o que ela
não dispunha, na verdade, era da convicção de que um fenômeno empírico pudesse ser tratado
em condições de exatidão, num ambiente artificialmente depurado de ocorrências aleatórias.
Não é que lhes faltasse o termômetro; o que faltava-lhes era a idéia de que o calor pudesse ser
mensurável. Não se trata de um problema de insuficiência técnica, conforme supunha L.
Febvre; é antes a ausência da idéia controlada de medida que explica a falta de precisão
(Koyré, 1981, p. 319-20).
Sendo próprio, portanto, ao discurso científico moderno, a formulação de leis
universais relativas ao campo em que ele se aplica, o seu saber depende, para se produzir, da
codificação dos procedimentos tipificáveis indispensáveis à pratica da experimentação
controlada. Quando se trata, por exemplo, de aplicar essas leis científicas na produção de um
medicamento, este somente poderá ser considerado cientificamente testado se seus efeitos
puderem ser verificados num universo determinado, como se dá nos chamados ensaios de duplo-cego. É no interior desse propósito que a ciência se alia à tecnologia, dela se servindo
como instrumento de precisão, produção e verificação dos efeitos mensuráveis e codificáveis.
Parece-nos legítimo, assim, supor que o atendimento psiquiátrico do sofrimento
mental a seu modo se apóia na idéia da experimentação controlada, segundo uma espécie de
concepção laboratorial do tratamento psíquico. No atendimento hospitalar são eliminadas as
variáveis não controláveis da vida do indivíduo, tais como uma visita indesejável, o possível
encontro com o traficante ou com a prostituta, a exposição a bebidas alcoólicas, a cenas de
violência, e daí por diante. Isso permite a aplicação de protocolos relativos aos horários da
medicação, aos encontros com o terapeuta, à mensuração do tempo do sono, do volume da
alimentação, do comportamento adaptado, etc. Mas ao passarmos, todavia, do laboratório
hospitalar para o serviço aberto, as variáveis não controláveis aparecem na mesma medida em
que perdem sua eficácia os procedimentos codificáveis. Pode-se prever no máximo
aproximativamente as situações com as quais o paciente terá que lidar, sem que se saiba ao
certo como ele irá reagir ao encontro com o contingente. E, quando se trata de uma visita
domiciliar, o laboratório se desfaz por completo. Caberá ao terapeuta encontrar, na
observação imediata da situação em que o paciente vive, o recurso do qual ele dispõe para
produzir uma intervenção eficaz, como se ilustra no caso relatado por uma acompanhante
terapêutica: ao se ver diante de um psicótico grave, que residia numa habitação em ruínas em
estado de quase mutismo, ela nota que a gaiola do canário era ali o único espaço relativamente
bem cuidado. Ela consegue então romper o mutismo desse paciente, iniciando uma conversa
sobre o pássaro que ele tão bem mantinha, não porque se interessasse por ornitologia,
evidentemente. Mas isso não impede que o caminho que dá acesso ao paciente se configure
no momento em que ela se coloca em movimento.
Encontramo-nos, portanto, numa situação em que a inventividade do terapeuta parece
ter mais importância do que o procedimento protocolar do cientista, num contexto em que a
própria noção de método, herdada do discurso da ciência, parece perder sua pertinência. Por
que, então, ainda assim insistimos em falar de uma metodologia articulada ao ato, quando o
que conta, em nossa experiência, parece exigir a demissão de toda metodologia, já que ela diz
respeito à consideração do elemento não previsível, não previamente descrito nos tratados
científicos?
Poderíamos, pelo momento, responder dizendo que embora nos interesse o elemento
não tipificável do caso único, da singularidade irreprodutível que se apresenta em cada
solução subjetiva, nem por isso deixamos de procurar os elementos invariantes do caso singular, segundo um método que essa busca exige. Trata-se de alcançar, para além da
inclusão do sujeito nas classes determinadas pelo diagnóstico fenomenológico ou estrutural,
aquilo que Viganó nomeou de diagnóstico de discurso, pelo qual se indica a posição de gozo
como elemento invariante do qual há muito Freud já extraía a própria nomeação do caso
clínico. Quando Freud se refere, por exemplo, ao homem dos ratos, à jovem homossexual, ao
homem dos lobos, à bela acougueira, ou mesmo ao sonho da injeção de Irma, está em questão
o modo particular de gozo como elemento invariante que se repete na história de cada sujeito,
sendo que no último caso, relativo à injeção dada a Irma, é a posição do próprio Freud que se
manifesta. Basta folhear os relatos de experiência disponíveis na revista clinicaps para
perceber que foi em consideração a esse elemento invariante, referido à posição de gozo do
sujeito em relação ao campo do Outro, que extraímos o nome dos vários casos ali apresentados. "O herói solitário", "o olhar que sustenta a cena", "o pedinte e o provedor", "o
abandonado enganado", foram os nomes através dos quais logramos estabelecer o diagnóstico
singular de discurso pelo qual se definem as possibilidades de inserção do sujeito no campo
do Outro social, segundo os modos de satisfação pulsional que ele dali retira.
É fundamental considerar a importância do fator pulsional como elemento invariante
que justifica o emprego do termo de metodologia em ato, para além do que seria o efeito da
articulação puramente formal do significante. Tem seu interesse lembrar que essa
consideração do elemento pulsional se articula justamente ao sentido dado por Aristóteles ao
termo de prudência, por ele tomado como princípio que orienta a ação no nível contingente da
realidade prática, por oposição ao campo teorético das realidades necessárias que permite a
aplicação de um método previamente definido. P. Aubenque nos faz notar que o uso do termo
frônesis, por Aristóteles, para designar o que foi traduzido em latim como prudentia, compõese
a partir do semantema fronein, do qual derivam, por exemplo, o adjetivo frenético ou o
substantivo esquizofrenia. Trata-se, na realidade, de um termo médico utilizado para designar
os órgãos da respiração (pulmões e diafragma), por meio do qual se exprime um estado
emotivo que dispõe o sujeito a uma ação, apontando para algo da deliberação prática que
ultrapassa a função abstrata do pensamento (Aubenque, 1963, p. 159).
E que, por ser eminentemente corporal, não poderia ser atribuído ao intelecto divino.
Referências Bibliográfica
MILNER, J.-C., L'OEuvre Claire. Paris : Seuil, 1995.
KOYRÉ, A. "Du monde de l'à peu près à l'univers de la précision". In : Études d'histoire de la pensée
philosophique. Paris : Gallimard, 1981.
AUBENQUE, P. La prudence chez Aristote. Paris : PUF, 1963.
LÉVI-STRAUSS, C. La pensée sauvage. Paris : Plon, 1962.
Recebido em Setembro de 2011
Aceito em Setembro de 2011
|
|